segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Conto - Um Natal em Quipedro


Naquela triste madrugada da véspera do Natal de 1962, quando tímidos raios solares principiavam a matizar a esplanada do meu aquartelamento em Quipedro, com pinceladas dum branco plúmbeo, urdidas com minúsculas faúlhas cor d´ouro velho, que lembravam estranho mar de nuvens de algodão esmaecido; fui bruscamente acordado pelos silvos inconfundíveis dos projécteis despejados pelos guerrilheiros contra as três casas em ruína e as tendas de campanha do pequeno reduto que comandava, seguidos de imediato pelas rajadas compassadas das nossas metralhadoras, pelos brados de combate dos soldados, e pelo trovejar duma salva de morteiros que, entretanto, mandei desferir em volta desse isolado e ermo acampamento.
Era mais uma daquelas acometidas que todas as semanas sofríamos naquele recanto enquistado no Norte de Angola, mas desta vez a refrega não durou mais de cinco minutos, porque quando, já refeitos da surpresa, encetávamos os movimentos de contra-ataque, depressa os guerrilheiros recuaram, transportando, carinhosamente, as suas baixas, perceptíveis pelos sulcos do sangue que polvilhavam os trilhos de retirada desses infelizes, que lutavam pela dignidade do seu povo e a independência da sua terra.
Desta vez tínhamos sido afortunados, pois apenas um dos nossos ficara ligeiramente baleado; mas quedei-me intensamente perturbado pela lembrança, que ia-se tornando obsessão, do quadro sempre presente da tremenda peleja acontecida no mês anterior, quando a par dos gemidos de dor e aflição de três camaradas bastante feridos, o desventurado Gabriel, que combatia mesmo ao meu lado, tombou varado por dois tiros contra o peito, sangrando abundantemente e balbuciando numa voz cada vez mais débil e esvaída: «ai, os meus filhos» … «os meus pobres meninos»… «os meus desgraçados filhos» … «a minha querida mulher»…; finando-se depois, lentamente, rodeado pelos ansiosos e impotentes camaradas, com a cabeça pousada nos meus joelhos, fitando-me com uns olhos doridos, muito abertos e estupefactos, como se perguntasse porque fora ele o escolhido, e suplicasse que não o deixássemos morrer ali, na flor da idade, tão longe da mulher que amava, dos filhos que adorava, e do venerável rincão dos seus avoengos.
Parecia-me danação de Deus que aquilo estivesse acontecendo ao soldado Gabriel, pobre operário agrícola, calado como as planícies imensas do seu Alentejo, sorridente e brando nos gestos e nas palavras; que no dia da nossa partida, entre lamentos, choros, e lenços brancos de despedida, aproximou-se de mim apertando com uma das mãos os deditos do filho de três anos, que vestia uns calções muito compridos e esfarrapados, enquanto com a outra enlaçava a franzina cintura da sua mulher, que estreitava contra o peito uma pálida bebezita; e que pousando uns olhos penetrantes, límpidos e muito azuis, disse-me numa voz dorida, e como se num presságio: - «senhor alferes … senhor alferes…, não deixe o meu marido morrer … tenha pena da gente… tenha pena da gente» … Os mesmos infelizes que minutos depois, quando emocionado preparava o pelotão para o embarque, ainda vi longamente elançados, moldando num comovedor cacho humano, que o pequeninho abraçava pelos joelhos, chorando com profusão …
Rebelado com a condição humana e a crueza de Deus, pesaroso, desatinado, e sentindo que não mais seria o que fora dantes, esconjurava sentimentos de culpa e de revolta, repisando a mim mesmo que não tive qualquer possibilidade de atalhar tamanha desdita, e como bálsamo para a ansiedade e a angústia, promovi que escrevêssemos à mulher do 1º sargento, que era uma respeitável senhora que morava na mesma aldeia do Gabriel, encaminhando algum dinheiro com o sentido apelo para que amparasse a infeliz Maria do Céu e os dois pobres orfãozinhos, e os brindasse com um Natal recheado com brinquedos, guloseimas, e muita ternura.
Enquanto congeminava que a resposta tardava, e que nessa pardacenta véspera de Natal, em que apertavam ainda mais as saudades das chãs e da família, tinha de animar os meus cabisbaixos soldados, que estimava como filhos, fui interrompido pelo cabo das transmissões com a alegre nova que, pela tarde, aterraria na minúscula pista de terra que havíamos rasgado à força de braços, a avioneta com o correio e presentes natalícios para os mais felizardos, incluindo o tão apetecido bacalhau vindo da metrópole; notícia que nos trouxe um sopro de ânimo, que aproveitei para mandar servir cervejas com abundância, a fim de tagarelarmos em torno dos rituais e das peripécias do Natal nas nossas terras.
Quando chegou à minha vez contei-lhes que a «Festa» - como era conhecida na Madeira a época natalícia -, em parte nenhuma do nosso Portugal era tão celebrada e desejada como nessa ilha distante, onde todos tinham o seu Natal, desde os habitantes das aldeias que conservavam a carne de porco nas salgadeiras, coberta de vinho, malagueta, e folhas de louro, para degustar na Consoada, à esmagadora maioria dos moradores do campo e da cidade que se esmeravam na decoração das suas casas, no ritual da construção da «lapinha» para adorar o Deus-Menino, na amassadura dos bolos de mel eivados de canela, pimenta, noz- moscada e cravinho, no preparo dos licores de tangerina e amêndoa, na feitura da «carne-de-vinho-e-alhos», para comer ao almoço com talhadas de pão, tisnadas em gorduras; e onde até os mais pobrezinhos se alegravam com um naco de carne de porco, umas fatias de pão e uns copos de «vinho seco».
Entre outras lembranças falei-lhes da ida em magote e vestindo fatos domingueiros para a última «missa-do-parto» nas igrejas do Funchal, donde com alegre burburinho derivávamos para o Mercado, à compra das flores, das frutas, e dos mais variados comeres para consumir nesse dia de família reunida; e ainda tive tempo para recordar os exageros dos ricaços empanturrando-se, como alarves, com «carne-de-vinho- e alhos, postas de peru recheado, lombo estufado com cebolinhas, tudo acompanhado de cuscuz aromatizado de segurelha, geleias, pudins, broas de mel, licores, laranjas, nozes, ananazes, tangerinas aos gomos, o «tin-tan-tum» e outras bebidas «finas», mais o indispensável copinho de genebra servido com o café, para amansar os fragores …
E já estávamos mais alentados quando no fim do dia a pequena avioneta fez-se à pista, e sem desligar o motor, o apressado piloto, aos gritos de Bom Natal e Boas Festas, alijou o saco do correio junto com algumas dezenas de pequenos volumes destinados aos mais afortunados, que os combatentes, prazenteiros e alvoroçados distribuíram entre si, os alentejanos abrindo pacotes com bacalhau e outras gulodices, e os algarvios sacando menos peixe, mas montes de aguardente de medronho; espraiando-se, de seguida, pelos quatro cantos do acampamento, para ler com avidez as missivas da mãe, das noivas e das namoradas; e que pouco depois, já confortados e animados, com grande galhofa passaram a gozar Afonso «o Escriba» que fingindo uma postura séria e muito respeitável lia, regaladamente, as cartas das suas sete madrinhas de guerra, quase todas acompanhadas com bombons de chocolate e recheadas de promessas de amor eterno …
Quanto a mim, além de três cartas que aninhei junto ao peito com a intenção de saboreá-las com a ceia natalícia, coube-me um volume vindo da Madeira, que continha um magnífico «bolo preto», antiga receita de família que a minha veneranda mãe sabia que adorava, e muitas broas e bolos de mel, que logo propus dividir com os meus camaradas.
E a brisa do espírito de Natal passou a soprar mais forte, quando em voz alta o cabo cozinheiro deu a boa nova que os felizardos também entregaram o peixe e a bebida que haviam recebido, para que todos os camaradas, mesmo os mais tristes e esquecidos, tivessem uma opulenta Consoada abarrotada com bacalhau, couves e ovos cosidos tudo bem regado com azeite da nossa terra, e orvalhado com muito vinho e a quentinha aguardente de medronho.
Foi quando num ímpeto de esperança abri a carta vinda do Alentejo profundo, e com intenso alvoroço informei aos meus camaradas, com voz enternecida e comovida, que a santa mulher do 1º sargento comunicava-nos que o sogro empregou a triste viúva do Gabriel no seu «mini-mercado», que o Joãozinho e a pequenita irmã eram tratados com muito carinho na creche da vila; e que naquela noite mágica, todos passariam a Consoada em sua casa, onde os esperava uma máquina de costura para a Maria do Céu, uma bola e um comboio eléctrico para o pequeno órfão, e duas bonecas lindas de encantar para a Aninhas, junto com muitas gulodices e toda a ternura da Terra.
Só então fiz as pazes com Deus, enquanto o milagre do Natal disseminou-se, intensamente, no pequeno aquartelamento de Quipedro, onde com lágrimas nos olhos, e muita alegria no coração, cantámos cânticos natalícios, sonhando todos com um futuro de Paz e Justiça … e que um Mundo melhor era possível …

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