terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Aluviões na Madeira no Séc. XIX


As Aluviões na Madeira Durante o Século XIX

Rui Nepomuceno

Embora o arquipélago da Madeira seja mundialmente conhecido pelas suas maravilhosas paisagens e pelo seu excelente e moderado clima, é do conhecimento geral que, excepcionalmente, tem sido varrido por grandes chuvadas, que em virtude da desrtificação de algumas serras, e sobretudo pela extrema inclinação das encostas têm causado horas de grande pânico, destruição, e perdas de vida.
A aluvião de Outubro 1803 foi considerada a maior calamidade que tem ferido a Ilha no largo período de cinco séculos; quando grande volume de águas das ribeiras do Funchal galgaram as suas margens e espalharam-se com grande ruído pelas ruas laterais, começando a sua obra de destruição. Nessas terríveis circunstâncias a morte surpreendeu muitos madeirenses na fuga, arrastados pela violência das correntes ou atingidos pelas derrocadas das casas e paredes que se desmoronavam, sendo certo que inúmeros prédios foram arrastados para o mar, incluindo a «Igreja de Nossa Senhora do Calhau».
Segundo referem Fernando Augusto da Silva e Carlos A. Menezes no «Elucidário Madeirense», «calcula-se que só no Bairro de Santa Maria Maior tivessem perecido cerca de 200 pessoas. Ruas inteiras desapareceram com os seus habitantes, e outras inundadas de água e lama deixaram os proprietários reduzidos à extrema indigência».
Segundo assevera Cabral Nascimento mum longo estudo sobre estes avontecimentos que publicu no «Arquivo Histórico da Madeira» (Vols.1 e 5), esta aluvião terá causado mais de 700 vítimas mortais e além da cidade, também houve muitos danos nas restantes freguesias do Sul da Ilha, nomeadamente em Campanário, Calheta, Tabua Ribeira Brava, Santa Cruz e, sobretudo em Machico, onde morreram catorze pessoas, ruiu a «Capela do Senhor dos Milagres», as águas danificaram algumas igrejas e ainda os arquivos de Foros, Capelas e Irmandades.
Em Fevereiro de 1804, chegou ao Funchal o Brigadeiro Reinaldo Oudinot, encarregado de dirigir as Obras Públicas do arquipélago e de mandar reparar os grandes danos verificados na cidade e no campo. Este engenheiro dirigiu os notáveis trabalhos para o encanamento, alargamento, e reforço das muralhas das bermas das ribeiras do Funchal e de Machico, e como refere Eduardo de Castro e Almeida no «Inventário do Arquivo da Marinha e Ultramar – Madeira e Açores» alertou sobre «a urgência de empregar todos os meios possíveis para obviar os desastres que as correntes das ribeiras causavam no dia-a-dia, sendo para temer a destruição de algumas localidades». Simplesmente, estes sábios conselhos, não têm sido seguidos por algumas autoridades camarárias por ganância, negligência e, sobretudo, pressionados pela cupidez dos «patos bravos» da construção civil, que têm estrangulado algumas ribeiras e, pasme-se, chegam a construir sobre o leito doutras, pondo em perigo as zonas ribeirinhas do Funchal.
Oudinot desenhou ainda um desenvolvido mapa da cidade do Funchal e da sua baía, e em todos os trabalhos para minorar os efeitos da tragédia socorreu-se do serviço braçal gratuito de muitos madeirenses, que apenas receberam géneros de primeira necessidade e a isenção de certos tributos, tudo de acordo com as antigas «Ordenações», que vigoravam desde o início do povoamento, para ocorrer a eventos excepcionais.

Em 24 de Agosto de 1842, outra aluvião também causou bastos sofrimentos e muita destruição. Novamente, como colhemos no «Elucidário Madeirense» da autoria do historiador Fernando Augusto da Silva «as águas das ribeiras saíram dos seus leitos e espalharam-se pelos terrenos marginais. Ficaram completamente inundadas as ruas do Bairro de Santa Maria Maior, o Pelourinho, a Rua dos Medinas e ainda outras. Uma grande parte da cidade ficou destruída, muitos edifícios arruinados até os alicerces, e muitas famílias ficaram pobres».)
E o mesmo desolador panorama verificou-se em 5 e 6 de Janeiro de 1856, tudo agravado pela tremenda epidemia de cólera morbus, que ceifou muitas vidas na Madeira e no Porto Santo.
E para alertar e deixar bem esclarecido que as aluviões são um fenómeno cíclico no Arquipélago da Madeira, lembramos que já nos séculos anteriores se tinham verificado outras tragédias idênticas, como por exemplo em 19 de Setembro de 1724, quando outra aluvião causou grandes danos na cidade e no campo, tendo morrido, pelo menos 25 pessoas.
Funchal, Outubro de 2006



Aluv

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

António Aragão e o Experimentalismo Literário Portugês


António Manuel de Sousa Aragão Mendes Correia, nasceu em 22 de Outubro de 1921, no Norte da Madeira, mais precisamente na freguesia e concelho de São Vicente. Estudou o ensino secundário no Liceu Jaime Moniz do Funchal, e licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas na «Universidade de Lisboa», tendo ainda estudado Belas Artes em Paris, na Itália, e também na capital.
Exerceu durante muitos anos o cargo de Director do «Arquivo Regional da Madeira», então instalado na Rua da Mouraria do Funchal, e nessas tarefas dirigiu o lançamento e a publicação, duma série de importantes transcrições de documentos relativos à História do arquipélago madeirense.
Foi ainda director da «Casa Museu César Gomes», instalada na Quinta das Cruzes; tendo publicado, em 1970, um vistoso e importante estudo sobre esse relevante núcleo museológico, que denominou «O Museu da Quinta das Cruzes».
Em 1955, António Aragão Mendes Correia, liderou a constituição do «Cine Clube do Funchal», que teve um papel importante na criação duma alternativa ao medíocre cinema comercial da época, em que pontificavam os filmes policiais e de pancadaria; o qual chegou a contar com mais de 400 associados, entre eles o poeta Herberto Hélder; e cuja actividade iria estender-se até os inícios da década seguinte; quando António Aragão e outros associados fundaram o «Cine Forum do Funchal».
João Maurício Marques, no seu livro «Os Faunos do Cinema Madeirense», referiu que o «Cine Clube do Funchal», «durante vários anos efectuou sessões na principal sala de espectáculos da cidade, exibindo nomeadamente filmes europeus, na altura já preteridos pelos distribuidores madeirenses. Numa entrevista ao suplemento cultural «Varanda» do «Diário de Notícias», António Aragão salientava em 1959 que pretendiam desenvolver «uma compreensão crítica e estética em face de cada filme apresentado, elucidando cenas e ideias difíceis de compreender ou que passam vulgarmente despercebidas» A estratégia para captar público era simples: «o que é preciso é dar-lhes mesmo o que eles não pedem nem sabem que existe».
Antes dos anos 60, António Aragão Mendes Correia também participou em exposições de pintura na Madeira, no Continente e até no estrangeiro, tendo ilustrado com esplêndidas gravuras o livro «Canhenhos da Ilha» da autoria do grande escritor madeirense Horácio Bento de Gouveia. Mais tarde, durante um longo período manteve uma galeria de arte em Lisboa, e em 2007, alguns quadros da sua autoria estiveram expostos no «Museu de Arte Contemporânea de Serralves».
Como historiador, António Aragão Mendes Correia publicou, em 1959, «Os Pelourinhos da Madeira»; em 1970, «Para a História do Funchal (pequenos passos da sua memória)»; e ainda «A Madeira Vista por Estrangeiros – 1455-1700»; no qual coordenou e anotou crónicas e trabalhos literários sobre o arquipélago da autoria de Cadamosto (1455), Conde Giulio Landi (1570), Pompeo Arditi, (1577), Hans Sloane (1687), Jonhn Ovington (1689), e William Bolton (1695 – 1700); terminando com uma importante antologia de outras obras realizadas acerca da Madeira, por forasteiros de diversas nacionalidades.
Acresce que, na qualidade de interessado e estudioso das temáticas ligadas à Etnografia e ao Folclore, com a colaboração de Jorge Valdemar Guerra e do músico Artur Andrade; durante todo o ano de 1972, António Aragão elaborou e executou uma importante recolha do cancioneiro tradicional do povo do concelho de Machico.
Por outro lado, antes dos anos 60, e de ter aderido ao «Movimento Experimentalista Poético e Literário Português» de que foi o principal percursor, Aragão Mendes Correia, ainda muito jovem, fez parte da «Tertúlia Ritziana», e em 1946, o seu Conto intitulado «Pressentimento», obteve o 2º lugar nos Jogos Florais organizados pelo Ateneu Comercial do Funchal.
Em 1952, com Herberto Hélder e Jorge Freitas, elaborou algumas poesias que foram publicadas pelo «Eco do Funchal» na colectânea «Arquipélago», onde claramente já revelava certo pendor modernista, como procuraremos demonstrar com a seguinte transcrição:

Do meu passado tudo…
folhas altas secando.
Nos meus olhos – ai barcos –
risos – velas brincando.

Maré cheia em altares;
dedos longos buscando…
Búzio-grande – saudade…
Corre o tempo lembrando.

Alto! Alto! Mar fundo.
Vai o medo subindo.
Marinheiro de pau,
o que estarás sentindo?

No muro do quintal
um ladrão espiando…
Tens esperanças ainda,
Sonho que vais sonhando?

Outra vez o Dilúvio
e Noé navegando?
Foge, foge menino
nem eu sei até quando.

Em 1956, António Aragão, foi o editor e principal impulsionador de revista literária colectiva «Búzio», publicada no Funchal, mas impressa no Porto, para a qual desenhou uma gravura abstracta com características geométricas e modernistas, e escreveu a Nota Introdutória, um poema modernista composto em 1954, outro escrito em 1955, um comentário sobre uma carta de Castilho dirigida a Agostinho Ornelas, e ainda um ensaio intitulado «O Público e as Novas Morfologias», onde já patenteava influências futuristas e revelava a sua inclinação para a ruptura contra os modelos literários tradicionais e a procura de novas formas de expressão artística e poética.
Também colaboraram na revista Edmundo Bettencourt, com três importantes poemas; David Mourão Ferreira com um ensaio intitulado «Nótula sobre o Fundo e a Forma em Poesia»; Eurico de Sousa também com três poesias modernistas; Ester de Lemos com um ensaio sobre uma obra de Orwell intitulado «O Pesa- Papéis»; Herberto Hélder com dois excelentes poemas de influência pós-surrealista; Jorge Sumares com um conto regionalista a que chamou «Rega»; e, finalmente, J. Escada, que escreveu um artigo comentando as exposições de Artes Plásticas de 55 e 56, realizadas em Lisboa.
Explanando um pouco mais as intervenções de António Aragão no «Búzio», começamos por referir que no Preâmbulo dessa revista, o nosso escritor revela que se tratava duma publicação de carácter colectivo «sem periodicidade ou compromisso de ideias ou sistemas; despida de intenções de luta ou cesarismo literário e sem qualquer tipo de monocordismo preconceituoso e intencional». Acrescentava que esse trabalho seria antes de mais «uma natural exigência, e uma requerida consequência viva, inconvencional e amorfa», no sentido que a sua finalidade era só para dizer sem porta-paz de antecipação para a jornada. «De cada um o que cada um possui de diverso, (…) conformado ou inconformado, de cada um a sua linguagem própria, o indivíduo inteiro».
Aragão rematava, afirmando que no seu conjunto «Búzio» era apenas um enfeixar de diversas vozes – «umas desconhecidas, novas e dispersas, outras de que no tempo já muito foi dito. Em particular é uma defesa contra o silêncio, uma espécie de revolta frente ao geografismo imperioso que como uma anulação, impõe constante e unicamente um céu azul por cima e um pitoresco turístico em volta».
No estudo ensaístico inserido na revista, que intitulou «O Público e as Novas Morfologias», que consideramos já possuir alguns ingredientes que anunciavam o Experimentalismo Literário, António Aragão discorreu sobre os diversos tipos de escritos que destroem o convencional e constroem o mistério, dissecando o problema da «dissociação da arte com o público na aguda crise da incompreensão e do consequente repúdio, derivada da mudança de símbolos, da afirmação de novas morfologias, e até do regresso a fontes primitivas capazes de criar mistério. (…) O artista, poderoso iconoclasta, destrói as formas definitivas e destrói devido ao esgotamento das forças misteriosas que as animavam e constrói, com outra morfologia, o mistério. E só ele se apercebe desse esgotamento e da necessidade de destruição – destruição sem sentenças ou elaborados racionalismos, sem prévios padrões políticos, sociais, económicos ou religiosos, destruição assistemática, inviolável, finalizada em si própria, egocêntrica e espontânea».
Em resultado de toda esta ruína dos seus símbolos caídos no caos, António Aragão refere que o público fruidor exaspera-se, pois baralha o convencional e tradicionalmente assente, «confunde os valores fundamentais do homem, a sua moral, a sua cultura, e os seus padrões abalados e ofendidos». Todavia, segundo o nosso escritor, essa dissociação do artista com o público não é para sempre, «porque do contacto sucessivo com a nova morfologia, da constante chamada aos sentidos e ao plano mental, a distância encurta-se e acaba por deixar de existir, tornando-se compreensível o que até parecia ser mero jogo formal. É difícil explicar a passagem psicológica da aceitação, mas é fácil experimentá-la, porque sucede sempre em qualquer época marcada com a mais variada morfologia».
Quanto às duas poesias que António Aragão publicou na revista colectiva de que nos estamos ocupando, adoptam algumas formas vanguardistas, embora ainda não exibam as principais características do «Experimentalismo Poético» que pouco depois o nosso escritor abraçaria, nem o modelo da «Poesia Concreta» que também chegou a cultivar, como veremos adiante. Para o provar vejamos «Génese», escrita em 1954:

Os búzios eram nas trevas
nas trevas brilharam olhos
os olhos rasgaram águas
as águas encheram ventres
os ventres criaram filhos
os filhos comeram terra
a terra deu logo bichas
as bichas pariram bichos
os bichos pejaram ruas
nas ruas nasceram casas
das casas saíram braços
os braços treparam muros
os muros prenderam bocas
as bocas disseram vozes
as vozes gritaram gritos
os gritos tornaram vozes
as vozes passaram muros
dos muros vieram braços
os braços ruíram casas
as casas fizeram ruas
nas ruas havia bichos
os bichos furaram terras
das terras surgiram filhos
os filhos só tinham ventres
os ventres traziam água
a água tapou os olhos
os olhos ficaram trevas

nas trevas cantaram búzios.

Após esta referência genérica à obra histórica, artística e literária de Aragão Mendes Correia, até os anos cinquenta, é altura de estudar e salientar o seu incontornável papel como impulsionador e precursor do «Experimentalismo Literário Português», de parceria com Ernesto Melo e Castro, o grande poeta madeirense Herberto Hélder, e dois ou três outros escritores continentais.
E começamos deste já por referir que de harmonia com o que ocorreu com a Pintura, a Música, o Teatro, e certas áreas das Ciências; o «Experimentalismo Poético e Literário Internacional» surgiu como uma importante tendência do vanguardismo literário da segunda metade do séc. XX, que se distinguiu por atribuir um especial relevo às questões da forma e da estrutura, nos variados fenómenos e manifestações da comunicabilidade artística e literária.
Deste modo, na teorização deste movimento, passaram a assumir grande importância e estatuto determinante, os diversos factores relacionados com a «Linguística Moderna», a «Semiótica», o «Estruturalismo», e, obviamente, os diversos aspectos da «Teoria da Forma e da Informação», de que foram principais interpretes e seguidores no estrangeiro Abraham Moles, Saussure, Jakobson e, sobretudo, o muito citado Levy Strauss.
Em Portugal, o Experimentalismo Poético e Literário ocorreu em Lisboa nos meados dos anos 60, mais precisamente em 1964, com a publicação da «Revista Experimental 1»; muito embora desde os finais de 50 já tivesse começado a germinar, como até podemos verificar ao cotejar os trabalhos literários de António Aragão organizados e divulgados naquele decénio, na Madeira.
Devemos até realçar que essa primeira revista colectiva experimental, ordenada e em grande parte custeada pelo nosso escritor, e de certo modo o Portugal Futurista» de 1917, foram um dos únicos momentos em que a Poesia Portuguesa esteve em sintonia e caminhou a par e passo com as experiências que iam acontecendo no Brasil e um pouco pela Europa e na América do Norte.
Convém também precisar que a postura para-científica dos experimentalistas, nomeadamente a atitude de nos seus escritos e objectos-actos concederem especial relevo à investigação criadora, e a um processo criativo que privilegiava muitíssimo mais o percurso e as peripécias das experiências que iam ensaiando, do que o próprio objecto que acabavam por produzir; tudo isso chocava profundamente grande parte do público e sobretudo os corifeus da crítica da época.
De facto, o novo modelo de comunicação experimentalista navegava em águas muito diferentes e em nítida contra-corrente aos padrões literários e artísticos há muito consagrados e estabelecidos, determinando a desconfiança e a rejeição activa de todas as forças conservadoras, dos tradicionais fruidores, e mesmo do grosso dos críticos artísticos e literários.
Tudo isso era fortemente potenciado pela atitude dos experimentalistas que de modo frontal e inédito convidavam os seus leitores e fruidores para que participassem de forma interactiva, em volta dos diversos objectos da acção ou do acto criativo.
Na verdade, em 1965, o próprio Aragão Mendes Correia, escrevia «que o denominado público, em frente de certos objectos artísticos, deixa de lado a cómoda ou incómoda posição estática de simples receptor de sensações, e passa a actuar como elemento activo, participante e provocador das suas próprias emoções». E para maior escândalo dos empertigados críticos oficiais e oficiosos, Aragão afirmava mesmo que a partir de então, era permitida e concedida a plena e inteira liberdade para que «o imaginário criador dos fruidores também actue sobre a obra de arte, ou seja que a sua imaginação passe de espelho receptivo, a operante, e que ponha de lado para sempre a posição de absoluta subalternidade a que tanto se escravizara».
E, fomentando a perplexidade de grande parte dos costumados consumidores e fruidores, e incrementando ainda mais a vigorosa rejeição da critica conservadora e dominante, António Aragão e os demais experimentalistas também desmontaram o discurso tradicionalista das literaturas ocidentais, propondo e utilizando um novo construtivismo fortemente apoiado no poder e no impacto da «comunicação visual».
Importa também realçar que o «Experimentalismo Português», cujo nome resultou da citada «Revista Experimental», é também um movimento de vanguarda que despontou nitidamente ligado e conexado com as experiências do «Movimento Internacional de Poesia Concreta», surgido em meados da década de 50, no Brasil e também na Europa.
Podemos ainda afirmar que as suas raízes mais profundas e longínquas foram beber no vanguardismo europeu dos primeiros anos do séc. XX, e alimentaram-se, progressivamente, na tradição barroca e maneirista peninsular, que a partir dos anos 60 assumiu uma grande importância. De facto, além das propostas em torno da «poesia concreta e da comunicação visual», a poesia barroca também atraiu grande parte dos experimentalistas, que encontravam nessas obras do passado afinidades idiossincráticas ainda actuais quanto à compreensão da estrutura mental e da sensibilidade artística, bem como manifestações lúdicas e valores retóricos belos e dinâmicos, apesar de haverem caído em completo desuso e esquecimento, e terem passado a ser mal amados pela critica oficial.
Acresce que, conforme referiu Melo e Castro na «Dialéctica dos Vanguardistas», o «surto barroco experimental de 60 deve ser atendido pelo que é: a manifestação critica dinâmica de um mundo em transformação, em que valores fixos vacilam e caem, as formas se multiplicam nas suas particularidades materiais, os materiais se valorizam como definidores do volume, do espaço e do tempo, em relações probabilísticas abertas».

Ainda antes de fazer uma referência mais pormenorizada aos trabalhos literários experimentalistas de António Aragão Mendes Correia, importa tentar descobrir as origens, o itinerário, e as demais raízes históricas do «Experimentalismo Português» dos anos 60. E começamos por salientar que os diversos percursores desse movimento já tinham um longo passado cultural, pois todos haviam publicado livros, e ensaiado outras vivências pessoais, sendo também certo que cada um deles tinha conhecido diferentes práticas literárias.
Na verdade, e como refere Melo e Castro numa longa entrevista dada a Raquel Monteiro, ele próprio havia vivido na Inglaterra entre 52 e 56 «e tinha tido uma experiência muito importante com os britânicos, e continuou a ter muitas relações com o «underground» inglês nos anos 60. (…) A Ana Hatherly tinha vivido na Suiça e em Paris, e era principalmente de formação francesa, mas também com algumas ligações ao mundo inglês. (…) O Herberto Hélder tinha publicado trabalhos na Madeira e a grande experiência dele era coimbrã; sendo um homem de formação pós-surrealista. (…) O António Barahona da Fonseca, era o mais novo de todos e o menos experimental, mas já tinha publicado alguns livros. O José Alberto Marques (…) era um autor que sempre se tinha interessado pelos vanguardismos da década de 10 e de 15 e dos anos 20; o «Orpheu», os futuristas, e também tinha contacto com os letristas».
Quanto ao nosso António Aragão Mendes Correia, que também era pintor, além dos trabalhos que realizou na Madeira nos anos 50, a que já fizemos referência; tinha vivido um curto período em Paris, e muito mais tempo na Itália, onde se especializou como restaurador de obras de arte. E foi precisamente em terras italianas que Aragão conheceu e privou com Emílio Villa, o pai do grupo vanguardista e experimental «INovissimi», com o qual o nosso escritor chegou a colaborar e de quem auferiu bastantes influências.

Mas, para conhecermos melhor a obra de António Aragão Mendes Correia, e a génese do «Experimentalismo Poético Português» e todas as suas manifestações, torna-se indispensável começar por analisar e estudar o primeiro número da «Revista Experimental», publicado em 1964, em que foram principais impulsionadores os madeirenses Herberto Hélder e António Aragão que coordenou e pagou quase toda a edição; os quais receberam a colaboração de Ernesto Melo e Castro, Ana Hatherly, Salette Tavares, Barahona da Fonseca e Ramos Rosa; todos eles escritores que apesar da equivalência de interesses na produção e publicação de experiências vanguardistas, já não eram jovens principiantes, e como já dissemos, tinham editado outros tipos de trabalho, vivido diversas vivências pessoais, e percorrido diferentes itinerários e padrões estilísticos.
O segundo número da «Revista Experimental» foi editado e novamente organizado pelo nosso António Aragão, com alguma colaboração de Melo e Castro e Herberto Hélder, tendo sido divulgado, em 1966, com um texto de Lewis Carrol na contracapa, e com uma curiosa e desusada capa de cartão em forma de envelope grampado, da autoria de Ilídio Ribeiro, contendo folhas soltas, não numeradas e dobradas de forma original, que foram compostas e impressas nas oficinas gráficas da «Escola de Artes e Ofícios do Funchal».
Contém uma separata do músico Jorge Peixinho intitulada «Música e Notação», signos alfabéticos, desenhos caligráficos, e poemas visuais, tais como «Mirakaum» de António Aragão; um texto experimental e quase cabalístico de Herberto Hélder, um poema vanguardista de Eugénio de Melo e Castro, um conto e desenho de Ana Hatherly denominado «Eros Frenético»; a «Composição Aliatória» de Salette Tavares; e outros textos experimentais dos portugueses António Barahona da Fonseca, José Alberto Marques, Luísa Neto Jorge e Álvaro Neto; dos brasileiros Edgard Braga, Pedro Xisto e Heraldo Campos; dos italianos Emídio Vila e Mário Diácono; e ainda dos ingleses Ian Hamilton e Mike Weaver.
Para fazermos uma pequena ideia da grande inovação experimental, introduzida pelas duas Revistas, faremos uma breve transcrição do poema «Mirakaum», escrito por Aragão em 1965, embora com a nota de que apenas nos dará uma pálida ideia, pois não temos condições técnicas para reproduzir os seus numerosos desenhos e efeitos visuais:

em Mirakaum meu reino que me lume
louvado seja louvado seja
me falando o caso de dizer
meu rei nu de Mirakaum
com mexer-se e mas ti gare
ou com boy ando o aumento
guerreiro do olhar
com 30% + 20% + 15% e
DDT e CTT e DSPT
e TNT e ANT e ROBT
e fazer o Q?
e dizer o Q? (segue pequenos efeitos visuais)

Depois desta participação activa e impulsionadora nas «Revistas Experimentais I e II», António Aragão Mendes Correia, sempre animado de propósitos vanguardistas, continuou a enfrentar a critica oficial, a rigidez da censura e a tacanhez de algumas camadas da burguesia conservadora; publicando novos textos experimentais na revista colectiva «Visopoemas».
Em 1967, sempre claramente influenciado pelo Estruturalismo, a Semiótica e a Poesia Virtual, António Aragão, foi um dos principais colaboradores da revista «Operações 1», de índole estruturalista, que para espanto dos basbaques corporativistas e nacionalistas, surgiu envolta num álbum de desmedidas dimensões e com os textos impressos em lâminas de cartolina, provocando ruidosas polémicas e a condenação dos críticos conservadores; seguida meses depois pela «Hidra 2», que também acarretou muitas controvérsias, pelas suas características inovadoras e experimentais, e onde o nosso escritor voltou a publicar trabalhos vanguardistas que escandalizaram e atarantaram as correntes literárias dominantes no nosso País, facto que em nada incomodou o nosso escritor, que segundo nos parece sentia muito gozo com isso, e nunca perdia uma ocasião para melindrar e susceptibilizar os pândegos e balofos burgueses tradicionalistas.
Anos depois, em 1981, e numa altura em que o estruturalismo literário de 60 acusava algum desgaste, Ana Hatherly e Ernesto Melo e Castro, com alguma colaboração de António Aragão e outros experimentalistas publicaram o «Poex – Textos Teóricos e Documentos da Poesia Experimental Portuguesa», que contem a documentação básica do Experimentalismo Poético Português.
Além de toda esta importantíssima e frutuosa colaboração nas revistas colectivas do movimento experimental, António Aragão Mendes Correia, ainda antes da Revolução de 25 de Abril de 1974, sempre fiel às matrizes vanguardistas e experimentalistas publicou em 1962 «O Poema Primeiro»; em 1964, a ficção «Roma nce de Iza Mor f ismo»; em 1966 os poemas «Folheama 1» e «Folheama 2»; em 1970, o poema «Azul e Branco», em 1971, o «Poema Vermelho e Branco»; e ainda o «Buraco na Boca», editado pelo semanário «Comércio do Funchal», onde o nosso escritor também publicou excelentes textos jornalísticos; e que é um romance que consideramos a sua obra-prima, pela elegância da escrita, as subtis abordagens às contradições da condição humana, e sobretudo pela originalidade, mordacidade, e profunda ironia.
Após a Revolução de 25 de Abril, sempre fiel aos cânones do experimentalismo literário, António Aragão publicou em 1975, o poema «Os Bancos»; em 1977 a «Poesia espacial POVO/OVO» (audio-visual); em 1980 a peça de Teatro «Desastre Nu»; em 1981, os textos poéticos «Metanemas»; em Junho de 1982 a 1ª edição da ficção «Pátria, Couves, Deus, etc»; contendo uma curiosa xerografia da sua autoria; e ainda os poemas «Joyciana» (com Alberto Pimenta, Ana Hatherly e Eugénio Melo e Castro); em 1984, publicou a ficção «Os 3 Farros» (com Alberto Pimenta); em Fevereiro de 1992 António Aragão, editou os contos vanguardistas «Textos de Apocalipse», acompanhados duma interessante gravura a cores por ele desenhada; e em 1993 voltou a divulgar «Pátria, Couves, Deus, etc», aumentada com novos textos experimentais, entre outros, «Tesão, Politica, Detergentes, etc».

Chegados aqui, é o momento de precisar que ao contrário do que ambicionaram os escritores neo-realistas portugueses, contemporâneos dos experimentalistas, estes nunca manifestaram qualquer interesse pelas teses e doutrinas marxistas, nem pretenderam intervir com os seus escritos e trabalhos, no processo da luta pela transformação da sociedade, no sentido da libertação da Humanidade de todos os tipos de exploração e opressão, e pelo fim da pobreza, da ignorância e das desigualdades.
Todavia, pelo simples facto de serem vanguardistas, numa conjuntura em que Portugal estava envolvido numa bafienta mas sanguinária Guerra Colonial, e estagnava asfixiado pela censura, pelo obscurantismo e por uma feroz perseguição aos criativos e dissidentes; os experimentalistas passaram a ser olhados pelo regime fascista, como criaturas suspeitas e até perigosas.
E na medida em que, indirectamente, denunciavam as consequências e as implicações do retrocesso cultural que grassava no País, e sobretudo, pelas suas atitudes anti-saudosistas e anti-liricas, os experimentalistas, eram acusados de produzir textos e objectos que escandalizavam as tendências aceites pelo gosto e pelos cânones do estatuto sócio cultural vigente.
A esse respeito, Melo e Castro, na entrevista que concedeu a Raquel Monteiro referiu que a censura chegou a recusar que um dos seus poemas fosse publicado, pois era considerado danoso, «embora não soubessem sequer que era contra eles, porque eram estúpidos como uma porta, mas sabiam que era perigoso e sentiam-se ameaçados».
Todavia, após a revolução de 25 de Abril de 1974, o punhado de experimentalistas que restaram fiéis ao espírito matricial do movimento, declararam-se frontalmente antifascistas, como facilmente podemos concluir da leitura dos trabalhos de António Aragão publicados após essa data, e também de alguns textos de Melo e Castro, Ana Hatherley, Alberto Pimenta, Salette Tavares e do madeirense Silvestre Pestana.
O próprio autor do presente ensaio colaborou com António Aragão Mendes Correia na confecção e distribuição duma folha humorística intitulada «O Lixo», coordenada e em grande parte escrita pelo nosso escritor, denunciando com muita ironia e corrosivo sarcasmo, uma série de atentados regionais contra as liberdades e o espírito de Abril.
Resta afirmar que nos dias de hoje, o experimentalismo ainda conhece alguma visibilidade e afirmação. Na verdade, num recente artigo publicado na importante Revista espanhola «Espacio Escrito 11/12» (Badajoz, 1995); Ernesto Melo e Castro e Ana Hatherly, declararam que a «Poesia Visual» no nosso tempo, «era uma alternativa ao hiper-subjectivismo e decadentismo que invadiram a poesia a partir dos anos 80. Dadas as suas grandes potencialidades de comunicação, ela pode veicular um optimismo construtivista que claramente se opõe às tendências metafísico-decadentes, típicas de um certo pós-modernismo que para nós, herdeiros da tradição barroca, aparece destituído de interesse. Actualmente a «Poesia Experimental» encontra uma renovação justificada, opondo-se aos valores economicistas da nova selva da sociedade neo-capitalista. Do mesmo modo como se opuseram ao fascismo e ao realismo socialista, os poetas experimentais, que continuam activamente produzindo, são agora hipercríticos do modelo consumista aplicado a todas as actividades humanas».

A terminar, cumpre lembrar que António Aragão Mendes Correia, apesar de se encontrar bastante doente e de ter deixado de escrever, com toda a justiça foi reconhecido, publicamente, pela Câmara Municipal do Funchal, como sendo um dos mais importantes homens da cultura e das letras madeirense, tendo sido homenageado, em 2007, por aquele Município, que deu o seu nome a uma rua na freguesia de Santo António, em ligação com outro arruamento que ostenta o nome de Edmundo Bettencourt, que também é outra grande e incontornável figura da literatura do Arquipélago.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A Madeira na Obra de Marmelo e Silva


José Marmelo e Silva, nasceu na Beira Baixa, mais precisamente na freguesia do Paul, do concelho da Covilhã, a 7 de Maio de 1911, e faleceu a 11 de Outubro de 1991, em Espinho, cidade onde residia desde 1947, e que, em 1987, o agraciou com a medalha do município; sendo que no ano seguinte, também seria distinguido com o grau de «Comendador da Ordem de Mérito».
Marmelo e Silva, estudou no Seminário do Fundão, donde acabou por ser expulso quando tinha 17 anos, por não se ter conformado com a distorcida visão do mundo e a hipocrisia castradora daquela instituição. E em virtude de não lhe haverem abonado a carta de habilitações literárias, foi constrangido a repetir todos os degraus do ensino desde a instrução primária, pelo que só em 1940, se licenciou em Filologia Clássica na Faculdade de Letras da «Universidade de Lisboa», após ter frequentado a «Universidade de Coimbra», onde participou na «Tuna Académica», com a qual visitou muitas cidades do País, e também a Madeira e os Açores.
Em 1936, prestou o serviço militar no quartel do Convento de Mafra, experiência que o inspirou nalguns lances do livro «Depoimento»; e depois de doze meses como soldado cadete, serviu quatro anos na categoria de oficial miliciano do exército.
Desde 1943 a 1947, José Marmelo e Silva fixou-se na Madeira, salvo num curto período de 1946, em que se ausentou na cidade de Lisboa, onde casou com D.ª Marcolina de Oliveira Gomes, tendo ambos vindo para a ilha, aonde residiram desde Setembro de 1946 a Junho de 1947, e leccionaram no «Colégio Académico do Funchal», do qual o escritor foi proprietário.
A partir de 1947, o casal passaria a morar em Espinho, onde Marmelo e Silva pertenceu à direcção do «Colégio de São Luís», de que era sócio; aí ensinando até 1960. Além da docência, impelido pelas suas raízes camponesas, também se dedicou a exercer actividades agro-comerciais.
Desde muito jovem, José Marmelo e Silva mostrou vocação para as letras, tendo colaborado na década de 20 no «Brado Académico», no «Raio» da Covilhã, e ainda na «Mocidade Livre» da cidade de Castelo Branco. Mais tarde, já nos anos 30, utilizando o pseudónimo Eduardo Moreno, cooperou no semanário lisboeta «O Diabo»; e nas décadas de 50 e 60 publicou diversos artigos no «Jornal de Notícias», no «Diário de Notícias» e ainda na revista «Seara Nova», onde divulgou, entre outros, os «Poemas da Ilha de Porto Santo».
Como escritor José Marmelo e Silva publicou em 1932, «O Homem que Abjurou a Sociedade – Crónicas do Amor e do Tempo»; em 1937, «Sedução», (cuja 5ª edição renovada e alterada saiu em 1989); no ano de 1939, divulgou na revista Presença, nº 1, série II a novela «Depoimento», (com 4ª edição melhorada, em 1967); em 1943, editou o livro de contos «O Sonho e a Aventura»; em 1948, «Adolescente» (modificado e passando a denominar-se Adolescente Agrilhoado, com 5ª edição de 1986); em 1968, «O Ser e o Ter», (com 2ª edição alterada em 1973); no ano de 1971, «Anquilose»; em 1983, «Desnudez Uivante»; a 1989, «O Cabo Elísio» (com um excerto publicado no «Letras e Letras» de 5 de Março de 1989); e, finalmente, «Memoriais» ainda inédito.

Foi nos primeiros anos de sessenta, quando ainda estudava Direito na «Universidade de Coimbra», que nos veio parar à mão a 3ª edição da novela «Sedução» de José Marmelo e Silva; um escritor de quem pouco ou nada tinha ouvido falar.
E ainda hoje lembro que fiquei seduzido pela sua linguagem ágil e moderna, embora tão opulenta que me recordou Aquilino. Também entusiasmou-me a rigorosa construção psicológica das personagens, com comportamentos livres de preconceitos e mordaças, onde de permeio com episódios de irremediável frustração e de exagerado erotismo, também pulsavam cenas da mais profunda ternura e humanidade.
E note-se que fiquei muito agradado com esse livro, muito embora nessa época, além de Marx, Gramsci, Sartre e Camus, lesse também com avidez Carlos de Oliveira e todos os neo-realistas portugueses, bem como os seus confrades estrangeiros da resistência transformadora, desde Steinbeck, Faulkener, Hemingwai, Morávia, Pratolini, Pavese, Thomas Mann, Brecht, Malraux, Graciliano Ramos, Neruda e o grande Jorge Amado.
Passado pouco tempo, li também com aprazimento a 2ª edição do «Adolescente Agrilhoado», onde irrompem certos traços autobiográficos do escritor, que nos fez recordar a «Manhã Submersa» de Virgílio Ferreira, e no qual Marmelo e Silva descreveu de forma muito realista o drama psicológico de um jovem expulso do Seminário, onde tinha entrado com grande pureza de intenções, e findara traumatizado e revoltado contra o ambiente perverso, falso e de grande hipocrisia que, inesperadamente, ali encontrou.
Também me recordo que procurei conhecer estudos ou ensaios sobre José Marmelo e Silva, e fiquei surpreendido por nada encontrar que satisfizesse a minha curiosidade, nem sequer no «Dicionário de Literatura» dirigido por Jacinto Prado Coelho, ou na conhecida «História da Literatura Portuguesa» de Óscar Lopes e António José Saraiva.
Apenas ouvi, nem sei bem onde, que esse silêncio ensurdecedor dos seus companheiros de letras, se devia ao facto de naqueles negros tempos em que o fascismo sujeitava o nosso povo a grande obscurantismo e a esmagadora opressão e exploração; José Marmelo e Silva, rendido aos cânones da já serôdia «Presença», se teria afastado das trincheiras dos neo-realistas, e da dura luta pela transformação dessa injusta e prepotente sociedade, votando-se à caterva dos «psicólogos de almas», e ao intimismo egoísta do romance burguês, desligado dos grandes problemas que afligiam o País.

Muitos anos depois, ao compulsar o Suplemento Cultural do «Diário» de 23 de Maio de 1987, órgão de imprensa que lia com muita assiduidade, deparei, com surpresa, que um vasto leque de analistas, quase todos marxistas convictos, dedicava uma longa homenagem a Marmelo e Silva.
Atentamente, apurei a entrevista que Marmelo e Silva concedeu a Serafim Neves, e fez-se luz no meu espírito, quando aferi que o escritor afirmava, peremptoriamente: - «não escrevo para vender livros, escrevo para os escrever. (…) Sou o autor do texto e não das teorias que vieram depois ou que vieram antes. Persigo as minhas histórias e não os comentadores delas».
Deste modo, depressa cheguei à conclusão que Marmelo e Silva apenas se havia denegado a aceitar qualquer tipo de ortodoxia literária, mantendo-se, porém, solidário, fraterno, e atento aos problemas do seu povo.
Na verdade, Mário Sacramento, asseverou que o nosso escritor «é não só um dos casos mais notáveis da moderna literatura portuguesa, mas o que mais fundo exprime e ensaia o significado da arte como libertação do homem – como reintegração do homem. Assim, quando o autor do «Adolescente» prefere, com certa insistência, designar o seu herói por «o adolescente», a dizer-lhe o nome, não está criando apenas uma ambiguidade que reverte à autobiografia, está igualmente emancipando-se dela por um esforço generalizador, que em certos passos aspira ao «ensaio» estrito da psicologia puberal. E, não obstante, que riqueza de concretização, a desta novela! E que variedade e verdade de tipos, (…) originalidade estilística e sugestão humanitária, (…) que talento aquele, capaz de entrançar em realismo de lei o que houve de pior no romantismo decadente. (…)
«Como tantos outros de nós, Marmelo e Silva é um elo entre duas idades, entre dois humanismos – como a adolescência ela própria. E se o primeiro humanismo libertava o homem, individualmente considerado, dos cilícios do preconceito, o segundo recondu-lo, como espécie, à reintegração do mundo».
O entrevistador e crítico Serafim Ferreira também quis deixar muito claro, que «partindo com a chamada corrente «neo-realista», mas antecipando-se-lhe numa mais exacta perspectiva humanista do fenómeno literário, Marmelo e Silva não deixou nunca de se identificar com esse movimento. (…) No entanto, o autor de «Sedução» procurou colocar-se sempre adiante dos valores da corrente, ultrapassar as barreiras de um esquematismo por demais evidente e já tão discutido, desdobrando a sua produção em dois sentidos ou opções diferentes: de um lado, o arreigamento a um mundo real objectivado nas suas razões e desigualdades sociais, visão lírica, sentimental e poética de um mundo a que não deixa sempre de se mostrar preso; por outro lado, a libertação plena de uma imaginação rica em experiência, sinuosa nos labirintos, (…) tendo sempre em conta uma intenção social e histórica bem localizada e escalpelizada em rigor literário que define toda a arte de escrever de Marmelo e Silva».
Por sua vez, Óscar Lopes, depois de analisar, cuidadosamente, toda a tipologia e fatalidade objectiva dos conflitos da novela «O Ser e o Ter» de José Marmelo e Silva; comentou «que nem faltam, sequer, figuras femininas de uma total abnegação económica, a sentimentos que se cruzam sobre a generalizada e mesquinha caça ao «ter», mas definindo-se precisamente por contraste, numa rede de relações balzaquianamente dominada pela distribuição da supervalia. Tudo coisas tão obviamente vividas, ou extrapoladas do vivido, como outras análogas o foram por Aquilino nas «Terras do Demo».
O crítico Liberto Cruz, expressou também um imenso apreço pela elevada estatura do estilo de José Marmelo e Silva, comentando que «apesar de verdadeiro esteta, não se embriaga contudo com o maravilhoso das palavras. Por detrás de cada frase está presente o escritor lúcido, o homem atento ao mundo que o rodeia, o contador excelente de histórias sabendo perfeitamente a grandeza e a função daquilo que se conta».
Manuel Poppe esclareceu ainda que José Marmelo e Silva «não desconhece a alma humana; o que não impede de se manter atento aos problemas sociais do seu tempo e de, acreditando no poder do homem e no valor da acção, angustiada e esperançosamente sobre eles se debruça».
E José Saramago foi de parecer que os livros de Marmelo e Silva dão a impressão «de textos inclusos, como se o autor por pudor, retraimento ou alta sabedoria, tivesse renunciado à total explicação, que por via da regra o leitor espera. As suas novelas assemelham-se singularmente a seres vivos, dos quais nunca se pode dizer «que são assim», por que no minuto seguinte são já «outro ser». (…) É um narrador discreto e reservado. Sabe que o livro tem vida independente da vida do escritor, e, o que é mais importante que sabê-lo simplesmente, sabe-o enquanto escreve».
Pelo seu lado, António Augusto Menano, afirmou, claramente, que «o que se mostra essencial em Marmelo e Silva não é o ter escolhido «determinado ambiente» (o universo da adolescência, da juventude, do seminário, do serviço militar, da escola, da universidade, a vida rural, a vida coimbrã, a vida provinciana), o mais importante, reside na sua acção renovadora, no que Gramcsi designou de «atitude do escritor» … em face desse ambiente. (…) Marmelo e Silva com «Sedução» espanta e abala os críticos, estabelecendo uma ponte entre os presencistas e o neo-realismo. Com «As Sete Partidas do Mundo» de Fernando Namora, «Sedução» afirma-se como a primeira ficção neo-realista. (…)
«Assim, para além de elaborar subjectivamente a relação das personagens com o meio em que se movimentam, Marmelo e Silva realiza, num estilo seguro e vibrátil, a projecção estético-literária que visa a «intencionalidade» e a «apropriação da realidade».
Quanto a António Rebordão Navarro, apelidou de Mestre a José Marmelo e Silva, e afirmou que é inconcebível que a sua obra ainda não tenha atingido o lugar cimeiro que merece. «Os seus livros, lidos e relidos são sempre novos ou não têm idade, concedendo sempre outras chaves, interpretações, espelhismos, velaturas, revérberos, construções, reconstruções, aberturas para recentes labirintos, considerações do corpo próximo da alma, do rancor, e do mistério insondável da existência».
Albano Martins, escreveria mesmo que Marmelo e Silva era um grande escritor, na rigorosa e inteira acepção da palavra. (…) Leia-se a «Desnudez Uivante» e ter-se-á a medida exacta da estatura do autor. Que o é, também, de outras obras exemplares. Um caminho percorrido sem alardes, sem desvios e sem transigências. Não cedendo à tentação do fácil, do gratuito e do (tantas vezes) falsamente inovador».
E Baptista Bastos, depois de analisar a novela «Sedução» e afirmar um profundo respeito e admiração pelas demais novelas de Marmelo e Silva, comentou que «a obra deste escritor discreto, relator ficto do corpo, o corpo entendido como liberdade ou como experiência do sagrado – a obra deste escritor maior possui algo de religioso, de valores e de implicações cósmicas, e nela avulta essa profunda relação causal entre a matriz e o crescimento, entre amor e morte, entre Eros e Tahnatos. (…)
«Um grande escritor, como José Marmelo e Silva, não é «medível». Pode, talvez, ser «mensurável», através da sua própria «desmesura». E como nele não há excesso (excesso de palavras, excesso na composição, excesso nesse equilíbrio entre o antigo e o moderno) eis porque, sem estratégias de glória, sem tácticas imediatas, e precárias porque efémeras, de marquetingue – eis porque ele é um clássico e, a um tempo, um contemporâneo».
Também Luís Miranda Rocha desenvolveu um demorado estudo sobre Marmelo e Silva e os seus livros, comentando «que o que a história diz da obra dele é que ele representa como que uma transição entre a novelística da presença e a do neo-realismo, Quanto ao significado, ele transcenderá razoavelmente os limites deste enquadramento. (…) A obra de Marmelo e Silva exprime um inconformismo e uma revolta perante convencionalismos, arbitrariedades, e um, enfim, decidido empenho na liberdade e nos valores que lhe andam associados e dos quais coragem, audácia e ousadia são os suscitadores de maior elevação. (…)
«As personagens principais dos principais livros de Marmelo e Silva são jovens, recém-saídos da adolescência e fazendo a aprendizagem da adultez. Eu creio que o escritor teve sempre em vista atingir um público assim, de preferência a qualquer outro. (…) Também por isso é ainda essa idade que eu gostaria de pensar que ele tem, como escritor».
Finalmente, Urbano Tavares Rodrigues lamentou que os trabalhos do final do ano lectivo, não lhe dessem tempo para a cuidada exegese que a obra inovadora de José Marmelo e Silva merecia. Todavia, num rápido testemunho assegurou que «o antifascismo sempre se exprimiu corajosamente na obra desse escritor, e que nele também admira a sensualidade avessa ao preconceito, ao policiamento consórcio, e a generosa adesão à causa dos malditos da terra, tão patente no «Adolescente Agrilhoado», curto romance que marcou posição original entre as obras decisivas do neo-realismo. Qualquer coisa de mítico, um certo sopro bíblico assinalou este texto que o tempo não envenenou nem amareleceu.
«A força erótica libertadora de «Sedução» e de «Anquilose», narrativas de límpida análise e observação da juventude, carregador de seiva e de desafio reapareceu, tantos anos volvidos, no imaginoso, por vezes barroco, mas sempre apaixonado e apaixonante romance «Desnudez Uivante». José Marmelo e Silva é um escritor da adolescência, do amor da transgressão, e tudo isso reaparece no cenário insólito da Madeira serranal, sem fragrância de flores tropicais nem folclore turístico, antes devorado de asperezas e tradições, de desejos prementes, que as infracções estimulam, enquanto os sons da guerra de 1939-45 ecoasse ao longe».
Por seu lado, João Gaspar Simões, um dos fundadores da «Presença», comentaria na sua «História da Poesia Portuguesa do Século XX», que «em poucos escritores dos nossos séculos XIX e XX encontramos a vibração do real aliada a qualquer coisa de irreal patente no prosa de José Marmelo e Silva quando ele, efectivamente, acerta no seu tema, que, em verdade, é sempre, pode dizer-se, o mesmo. (…) O tema dos amores frustrados, das mulheres levianas, dos encontros sensuais avulsos, tudo isto misturado com uma sentimentalidade realmente ingénua, podíamos dizer, mesmo provinciana, mas que na focagem multifacetada da narrativa, ganha relevos singulares, imprevistos súbitos, aspectos onde a ferocidade e a ingenuidade, a candura e a perversidade se dão fraternalmente as mãos».

Alguns anos passaram em que pouco soube acerca do escritor, até que em 2003, adquiri a notável impressão da Obra Completa de José Marmelo e Silva, publicada pela editora «Campo das Letras», com um importante prefácio da coordenadora Maria de Fátima Marinho, e excelentes ensaios de Arnaldo Saraiva, Celina Silva, Maria Alzira Seixo, Maria Manuela Morais Silva, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo.
E nos primeiros meses de 2008, deparei-me na revista 41 da «Islenha», com um extenso estudo sobre José Marmelo e Silva, elaborado pelo crítico Ramiro Teixeira, no qual o ensaísta lembrou que muitos dos escritores que aceitaram a «ortodoxia» desapareceram, enquanto Marmelo e Silva «soube caracterizar uma voz sofridamente pessoal para além da circunstancialidade retórica do seu tempo. Por isto, não cabe nas prateleiras das correntes literárias do tempo que atravessou, sejam estas as do «neo-realismo» ou da «Presença»: não tem um pé numa coisa e o outro noutra, tem sim ambos os pés fixados num amadurecimento literário, com todos os seus defeitos e virtudes, que pela perturbação que transportam o fixam igualmente no aquém de todos os «arrumos», de todos os figurinos, de toda a objectivação rigorosa».

Como já dissemos, no período da 2ª Guerra Mundial, José Marmelo e Silva residiu durante alguns anos na Madeira, e desse estreito contacto com a ilha - onde além dos típicos problemas da insularidade acresciam os gerados pelo conflito bélico, e uma tremenda crise económica, social e até moral - resultou, em grande parte, o Romance «Desnudez Uivante» e o conto «O Cabo Elísio»; muito valorizados também pela experiência e conhecimentos do escritor acerca dos labirintos e meandros da vida militar.
A acção desenrola-se em torno duma pequena unidade do exército, amoldada com militares frustrados, mal equipados, bisonhos, ociosos, desmotivados, muitos deles indignados e até revoltados, que sem as mínimas condições de conforto vegetavam num destacamento montado no comatoso e desolador planalto do Santo da Serra.
A personagem principal é um jovem alferes miliciano, intelectual, progressista, partidário dos aliados, recrutado contra a sua vontade, que deplorava a miséria a que estavam sujeitos os militares e o povo da Madeira, o deboche entre a soldadesca, a corrupção, as prepotências e as injustiças; mas que também ele se aturdia e alienava, entregando-se a eróticas libertinagens e uivantes transgressões sexuais, com a Madre dum Convento, a filha do capitão, e a Aninhas e Gracinda, duas camponesas madeirenses.
De tudo isto resultou, segundo Maria Alzira Seixo, «o carácter eminentemente complexo deste texto, aparentemente directo e linear, que a uma leitura de superfície pode parecer apenas incómodo ou incongruente pela insistência na dimensão orgíaca e no palavreado obsceno (se assim fosse, teríamos apenas um escrito de erotismo vulgar), mas que o é pelo que de atitude humana essencialmente se assume entre o trágico duma situação-limite de carência, e a farsa (o quase grotesco) do seu preenchimento cumulativo através dos excessos mais desencontrados e mesmo discursivamente desconexos».

Aclaradas as circunstâncias que demarcam a «Desnudez Uivante» e o «Cabo Elísio», passaremos a resumir e recriar os comentários e alusões referentes às paisagens, aos costumes, e ao difícil quotidiano do povo da Madeira.
O escrito começa por referir que vindo de Lisboa, o alferes miliciano José Luís Jordão, desembarcou na ilha e poucos dias depois desprende-se para o Santo da Serra, para se apresentar no destacamento da sua unidade;
«Do Funchal a Machico, nada de maravilhoso, nada de imprevisível. Nenhuma singularidade tropical. (…) Nisto surge o pormenor que não deverei esquecer nunca. Relanceado da escarpa, na vertical dos nossos pés, o mar ilhéu, mudo, profundo, carbonoso, sem uma ruga nem um risco de asa, intimida-nos como um abismo lunar. Ouvi-lhe o silêncio escuro, o coração parado. Estremeci».
Já no interior, quase a meio da ilha, a carrinha que conduzia os militares estacou para que todos repousassem um pouco, e o alferes procurou um pouco de sombra: - «Entro na floresta onde o verde do loureiro obscurece e o tortulho alastra. Desolador este paraíso de vegetação selvagem, se não fora a esperança de perpetuidade que cintila no intumescer dos gomos, no pespontar dos ramos. E o mistério que nele vive, me prende e se esquiva. Um rafeiro acompanha-me. Observo-lhe o esqueleto, a inteligência. (…) Fura, cheira, rebola-se, goza da vantagem dos quatro pilhares e cabeça aguda do animal genuíno da floresta. Impossível ter o primata adquirido aqui a posição erecta. Neste digladiar teimoso de copas e de agulhas, o bípede é obrigado a rastejar. Eu ou me agacho ou me revolto. Tal o dilema. A vegetação ameaça-nos, sobrevive-nos.
«Detenho-me de preferência nos braços de um azinho idoso. O ulmeiro esbelto perde-se na cinza do ar. Enquanto que o Elísio (assim lhe gravaram na coleira aristocrática) continua a latir, dum esconso a outro, exibindo-me a espaços a glória de ser quadrúpede. Trago comigo este livro para quê? Flui a tarde na irisação de uma gota de água que não cai».

Mais tarde, já instalado no desolado acampamento incrustado no planalto do Santo da Serra, o tempo passava enfadonho e áspero. «O pesadelo era a nuvem; o planalto, o leito. Visceral, do leito à nuvem, o verde luz da vegetação. Musgo ou floresta, tudo a nuvem enrodilha nos seus cabelos tépidos incestuosos.
«Céu negro. Temperatura morna pegajosa. Solidão de mundo ausente. Nem pássaro dentro, nem besoiro álacre. (…)
«Assim escorrem os dias, as noites, a corrupção, a insídia…

Cada vez mais entediado, o alferes recordou quanto tinha sido bem diferente, há cinco anos, quando tinha esdado na Madeira acompanhando um cruzeiro da Tuna Académica de Coimbra. «Uma alegria infinita, fruíamos o espanto-triunfal dos velhos descobridores: mundo exótico, novo, num estado de pureza virginal. Como provindos duma outra galáxia, rodeavam-nos de admiração, de gentilezas excessivas – bailes sumptuosos em nossa honra, moças duma doçura que não há, rendidas! Passeios pela ilha que assombravam. (…) Cortes verticais de grande altura (lembro os 600 metros, no Cabo Girão e as cabrinhas encarrapitadas na face a pique), abismos de água cavados entre montanhas, picos nevados agulhando o céu, cabeleiras de águas ondulantes, rios de flores na cidade…Em suma, um éden acabado de criar. Mas não perdíamos a noção do real... No percurso de tantas maravilhas, as lágrimas da gente que nos olhava da porta das cabanas» …

Os dias iam passando e o militar só não apodrecia de tédio porque de vez em quando espairecia pelas redondezas, «quando a natureza se lhe afigurava propícia. Toda a manhã a nortada varrera as clareiras da floresta, o nevoeiro fragmentava-se, voava em lençóis fantasmáticos que a ramalheira rasgava, sumia. Pela primeira vez, em oito dias de planalto, vi, jubiloso, a brancura do Pico Ruivo, mamilo fulgurante na harmonia azul do céu. (O cão ia comigo?) Maravilha, os pinheiros floridos, baloiçando, zumbindo, quais rodízios suspensos dos brancos cirros que vogavam. Floridas também, e sensuais, as fruteiras do pomar, que logo as laranjeiras me impregnaram do seu cálido odor. (…)
«Retrocedo no caminho que afinal se cobre de musgos e de madressilvas floridas, e observo a levada que o ia acompanhando humildemente, e tão repousada que dir-se-ia dormindo. Que bondade e inocência a da água que vem para nós descida das montanhas! Apraz-me brincar com ela, diverti-la, jogando-lhe bagas de zimbro que, balanceando, por si mesmas se recreiam, e sigo-a até à rampa do lado sul, maravilhado da sua ternura e mansidão, e como nela se debruçam os plátanos a mirar a imagem dos próprios olhos doirados».
A meio do trilho, de novo se rarefez a nuvem que durante algum tempo reaparecera, «e os olhos alongaram-se por abismos e alturas. Árvores até aí espectrais, de visão radiográfica, readquiriam a sua beleza específica da folhagem gorda e oleosa. Já o azul transbordava do céu sobre as quebradas longínquas. E brilhavam de sol branco até à cinta os picos agulhados, onde a noção do real se evolava.
«Iam comigo trabalhadores da terra. Via-os bisonhos, receosos, talvez ressentidos de penas ancestrais… Que pensariam de tão complexa grandeza? Porque nem tudo era fascínio. Escarpas amedrontadoras, declives vertiginosos, águas rugindo, desfaldas arrepiantes… (…)
«- Faz-me lembrar o Bocarral do Inferno – digo interessado para que todos ouvissem. E acenei para um recente desprendimento de rochas que represavam a água no fundo da ravina.
«- Oh!, pior é quando matam, arrastam palhotas, gente a dormir…
«- E na construção de estradas? – interveio um cabo muito afoitamente. – De há um ano para cá, três derrocadas colossais nas obras de S. Vicente – Seixal. Trabalhadores cuspidos da falésia, 700 metros de altura, no meio de avalanches vazadas no ma».

Semanas depois, o alferes subiu quase até o cume dum dos picos do interior da ilha, acompanhado pela filha do capitão que o granjeara no acampamento, «sereia encantatória com olhos de esmeralda nascidos no fundo dos mares, que trazia consigo o aroma e a frescura de flores entreabertas.
«- Estamos «porriba» da nuvem! – Gritou ela, provocadora de alegrias.
«A falésia, - que singularidade inesperada! Uma névoa branca bordejada de oiro colmatava o desnível falésia-mar e convidava-nos ao repouso abissal imperturbável. O manto estendia-se com rigor linear dois metros abaixo dos nossos pés, não urdindo transição semelhante à de penumbra, claridade, luz. O salto era tentador… (…)
«Entardecera… Tudo à nossa volta foi perdendo o encanto das primeiras horas. O Oceano liso-imóvel dir-se-ia fóssil antediluviano. A Penha d´Águia, maravilha suspensa, cinzelagem da água, agora fantasmalhão que amedrontava o vale. Telhados vermelhos trepando pelos socalcos atapetados de verde, sombreados de abacates e anoneiras, - igualmente despidos do seu fascínio: longínquos e de seus donos, sem fruto, sem voz» ...

Passados meses, finalmente, uma semana de férias no Funchal. Ardentes talvez... Constava que já tinham chegado as gibraltinas, refugiadas da guerra…
O sonido monótono do motor apelava ao sono. «Espreito pela janela poeirenta, ângulos, retalhos da vila de Santa Cruz. Palacetes de base roqueira debruçam-se, retribuindo a alva fidalguia ao mar azul henriquino. Outros de igual brancura escondiam-se entre arvoredos da encosta abaulada».
Finalmente, a carrinha estacionou perto do cais. «Vou enfim passear os olhos pela cidade, do mar para a montanha. E o que logo me prende e maravilha é a festa cromática da natureza. Vê-se renascer o sol de Abril nas delicadas flores esplendentes. As ribeiras que dos altos montes se despenham correndo seu destino ao mar, não são ribeiras de água rumorejante espelho da cidade. São torrentes de flores que lhes engrinaldam policromaticamente o leito. Sortilégio! (…)
«Um barco acaba de atracar, e com a avalanche vinda da Pontinha, o «Golden» ficou sem um lugar vago. Fui subindo ao 1º andar e dei com um salão a tresandar de aburguesado, pequenas mesas rés-do-chão, meiples de coiro de javali para adormecer ingleses aposentados, e quase repleto, ele igualmente de fardas de não muita demora. Falavam ruidosamente, esfumaçavam… Domino a curiosidade, enterro-me no estofadão. Começo a desdobrar os jornais, atento aos mapas da guerra».

Os trepidantes dias de férias no Funchal depressa acabaram. «De novo, no Planalto do Santo da Serra, escorrem os dias, as noites, a corrupção, a insídia» …O escritor ainda se espanta como pôde aguentar «três anos de planalto (deserto, gorduroso, enevoado, coberto de vegetação voraz que dir-se-ia absorvente do próprio ar que respirávamos. Coisa curiosa: o vento cilindrava o nevoeiro em grandes rolos que iam por sua vez dissipar-se nos cedros como fusos).

O alferes Jordão recorda-se que pouco depois de regressar desse descanso na cidade, ecoou como refrigério a ordem de marcha para construir uma carreira de tiro nas bandas do Faial. Pelo menos, quebrava a monotonia… e a ociosidade…
«O caminho sumia-se através de massas cerradas de austrálias, choupos e eucaliptos, mas, onde parecia menos impressa a intervenção do homem, arbustos bizarros emaranhavam-se gracilmente em freixos e bambus, salgueiros a amargoseiras. Uma levada fugia sempre à minha frente, ora clara e cantante, ora escondida como réptil, e pressentia-se no extremo do planalto a sua precipitação leitosa, pulverizante, convertida milagrosamente em grande cabeleira branca. Acompanhei-a durante muito tempo, encantado dos seus rumores e negaças. Quando toda a linha do horizonte era já só minha e um silêncio profundo se fez em toda ela, nascido das mais remotas origens e nunca, no decorrer dos milénios, interrompido pelas gerações, dei por mim suspenso desse mistério espantoso de ficar só no meio da Terra inteira.
«Ali trazido, onde ninguém sabia de mim, ou prezaria de nada a minha existência, eu senti, por momentos, angustiosamente, o esquecimento total da morte, semelhante ao duma haste extinta. O Homem apenas sobrevive em comunhão e solidariedade – e sem elas é pouco mais que inútil. Revejo-me ainda hoje jacente nas raízes dum pinheiro marítimo secular, esmagado por esse encontro frio com a fria mineralização do ser. Então vira eu, ao fundo do planalto, o mar longínquo, negro e imóvel, mas tão negro e imóvel como se todos os sinais de vida do planeta expiassem a sua agonia.
«Assim estive, desaparecido e só, não sei por quanto tempo. Finalmente, diante de mim, através das folhagens, um luar surpreendente, níveo-azulado, coava-se e parecia sorrir, como vindo do mundo real, belo como uma aparição sagrada, parecia penetrar-me, encher-me de claridade, iluminar-me o sangue, outra vez fremente, outra vez humano».

A enorme dependência da Madeira, e a dominação esmagadora dos britânicos, perante o autismo do Terreiro do Paço, não escaparam à lupa de Marmelo e Silva. «Fraudes, difamações, suspeitas, vinganças – são de esperar no espaço português, onde os reizinhos são sagrados e sangrados todos nós, muito especialmente nesta ilha que o poder central, de olhos vendados, entrega à voracidade dos monopolistas estrangeiros. (Veja-se o escândalo da cana-de-açúcar, recentemente esbulhada aos naturais, oferecida pelo ditador, de mão beijada, ao seu londrino amigo Hinton). (…) A Madeira jaz ainda na fase da escravatura, retida pelo colonialismo inglês, com as inevitáveis consequências de fome, roubo, prostituição e suicídio».
A tudo isso acrescia a desmedida exploração a que estavam sujeitas as bordadeiras. Num diálogo dramático, uma dessas pobres mulheres desabafava: - «Ah, se soubesses do meu martírio… Bordei, escrava de mim, desde os três anos. Na palhota éramos oito, 16 mãos noite e dia a bordar, e não comíamos senão papas frias de milho, que vinha de África. São precisas ainda hoje 18 horas diárias para um salário de esmola».
Até as pobres adolescentes do asilo de Santa Úrsula no Santo da Serra, eram cruelmente exploradas. O alferes, ainda tentou consolar uma delas, explicando que pelo menos, no abrigo do internato, se livrara da miséria e «dum trabalho precoce.
«- Livrei-me! Qual uma que se livre, de fome bem o diabo a leva, Doze horas a bordar na cadeirinha. (…) – Aos doze anos, passei a catorze horas, é assim, na ilha. A bordar se nasce, a bordar se morre. (…) E mesmo sem pagar impostos, nem medicamentos, os ricaços industriais apavoravam-nos: - Dizem que estavam a sustentar-nos, que lhes rapávamos o dinheiro dos bolsos, a caridade tinha limites (calcule, eles a engordarem à nossa custa!) que nos punham a pão e água… Milhares de criança morriam lá fora à espera de vagas da nossa cama-e-mesa. «Então, rua! Que o cemitério não estava ali para outro lixo…»
E para cúmulo da injustiça, exerciam toda essa exploração, mesmo naqueles ricos tempos da guerras, tão salutares para as exportações e os seus réditos...«O mercado, excepcionalmente favorável sem a concorrência das Filipinas «obrigava-os» a exigir mais horas de trabalho (…) Cresciam à farta os lucros. As crianças começaram a sentir-se a estalar por dentro, com cuspos de sangue… Conclusão, - com o rótulo de caridade, um trabalho ilícito a vários níveis»…

Nem os pachorrentos animais escapavam à monstruosidade que grassava. Numa das curtas deambulações pelas redondezas do aquartelamento o oficial miliciano perguntou a um camponês: «Diga-me só: Aquelas palhotas na rampa, todas iguais, - vive gente ali?
«- Vivem as vacas cegas – e riu espontaneamente… (…) - O meu alferes não sabe? As vacas leiteiras. Prantam-se à manjedoura, depois é até a morte. (…) – Para estarem quietas, o patrão arranca-lhes as vistas, salvo seja. (…) – E já não arredam pé. Esperam sempre o dia.
«- Assombro! Uma negridão perpétua, sonhando com prados verdes…
«- Ora! No mesmo lugar, sem ralações nenhumas… Comem, dormem, dão leite com fartura, engordam, - que mais querem? Tratadas como princesas»! ...

Tal como os bichos, os próprios vilões, boçais e analfabetos, vegetavam flagelados pela exploração e a miséria… Enquanto prosseguia a caminhada, o alferes passeava os olhos pela paisagem. «Além um moinho com palhota anexa, aqui, à beira do trilho, um cortiço esventrado onde vivem crianças selvagens (pai e mãe mendigos).
«Descansaram, por fim, na Venda dos Quatro Caminhos. Havia àquela hora uma atmosfera sufocante, de feira de escravos. A camioneta Burnay, de Santa Cruz, recebe ali, diariamente as natas de leite originárias de Santana, Faial, S. Roque, Porto da Cruz e redondezas. (…) Não há animais de carga nem de tracção. Ainda que houvesse, qual se adaptaria aos milhares de degraus de Babel que ligam abismos do inferno aos do céu? Só o animal humano é passível de tamanha ousadia (e sofrimento).
«No calvário das natas, centenas de trepadores vêm de quilómetros de distância com a carga albardada ao tronco, saco encordoado à cabeça, inundados de suor, descalços, abandalhados, malcheirosos, esbofados, língua de fora, - porventura moribundos.
«(Quem libertará de vez no universo os flagelados do infortúnio?)
«Este que observo de perto descarrega-se ao balcão e logo se precipita para a torneira do exterior. Mas não se lava. Emborca goladas e goladas ruidosas, até que a asfixia o faz rodar, ziguezagueante, por donde veio. Isoladamente, estende-se no musgo humedecido, rola sobre si mesmo, remédio original de estancar o suor. (…) Muitos gesticulam, nem falam, ardem por grogues, sua redenção e morte, enquanto outros, atendidos, bebem, bochecham e, entreolhando-se tacitamente, ainda ofegosos, lembram doentes na hora da extrema-unção».

A decadência e o abastardamento alastravam como nódoa de azeite….
Enquanto caminhava o alferes Jordão ia cotejando:
«As algarvias, e muito especialmente as de Tavira, cidade morta, perdem-se pelos nortenhos. Influência talvez dos cursos milicianos…Assim acontece aqui, connosco. As madeirenses caem-nos aos pés, de joelhos. (…) Põe-se-lhes um dedo, e alas assapam-se. Nada ariscas, nada unhas de gata. Às vezes até gostaríamos duma resistenciazinha estúpida. Mas não. Assapam-se» …
E perturbado, o militar concluía:
«Escondemos em eufemismos as realidades perversas. Apelidamos de ilhas adjacentes a Madeira e os Açores, quando na verdade a colonização a todos nos subjuga. Para estes homens que acompanho, a salvação está no emigrar. Eles confessam-nos. Os senhores da terra vivem em Lisboa, em Londres, também em Roma, e sem remorsos… A Venezuela vai receber a força do trabalho dos analfabetos…(…)
«- E as mulheres?
«- Que se defendam com os bordados.
«- E morram tísicas, não é?...

Os Poetas na Família de Francisco Álvares Nóbrega


Francisco Álvares de Nóbrega, o prestigiado vate de Machico, provém duma família bafejada com o dom de exprimir com belos e harmoniosos cantos, os requintes da natureza, o amor, os dramas, e os sentimentos humanos; dádiva que, certamente, muito se deveu à magia de ter nascido em Machim, «a vila idosa», que refulge «na fralda de dois íngremes rochedos, que levantam aos céus fronte orgulhosa».
Um desses poetas chamava-se Januário Justiniano de Nóbrega, nascido no Funchal em 25 de Fevereiro de 1824, cidade onde faleceria a 28 de Julho de 1866, que ficou conhecido como talentoso escritor e jornalista; e ainda por ter sido sobrinho do nosso «Camões Pequeno».
Justiniano de Nóbrega casou no Funchal com Natália Pereira de Nóbrega, que minada pelo desgosto, pouco tempo sobreviveu à morte do marido. Desse casamento nasceu um único filho, que tal como o pai, chamou-se Januário Justiniano de Nóbrega Júnior, que foi ajudante da Conservatória do Registo Predial do Funchal, tendo contraído matrimónio com Dª Virgínia Pereira de Nóbrega, de quem teve o afamado poeta e jornalista, João Marinho de Nóbrega, que na nossa juventude chegamos a conhecer.
E por mais invulgar que pareça, outra grande prova que nos genes de Francisco Álvares de Nóbrega e dos seus familiares, pulsava a criatividade e a inspiração poética, lemos num artigo de Alberto Figueira Gomes, publicado na revista «Das Artes e da História da Madeira», que Januário Justiniano de Nóbrega, sobrinho do nosso «Camões Pequeno», «tinha três irmãs – Carolina, Alexandra e Josefa, e que todas elas também se dedicavam às musas».
Todavia, ao contrário do seu tio de Machico, que após a instrução primária trabalhou com o erudito Marco João de Ornelas, e estudou no «Colégio de São João Evangelista», entre outras, as cadeiras de Filosofia, «Retórica», e «Gramática Latina e Portuguesa»; Januário Justiniano de Nóbrega, apenas possuía a quarta classe, muito embora se tivesse salientado como autodidacta, ao ponto de ter sido um dos melhores jornalistas do seu tempo, e um talentoso praticante das Letras, tanto na prosa como em verso.
Apesar dessas diferenças, é um facto que nos dramas da vida e na tragédia da morte, encontramos grandes afinidades entre o sobrinho e o nosso «Camões Pequeno». Na verdade, como de forma emocionada o próprio Januário Justiniano de Nóbrega verteu no prefácio da edição das «Rimas» do seu tio; o nosso poeta de Machico, amargurado pela doença, o infortúnio e os males de amor, «depois de se fechar no quarto e enrolar-se num lençol, que cozeu até os ombros; levantou a própria eça no silêncio da noite, rodeou-se dos livros a que consagrava as longas horas de insónia, pôs à cabeceira os seus escritos, e libando como Sócrates a bebida fatal, adormeceu no seio do Criador».
Pelo lado do sobrinho, também bateu-lhe à porta uma morte fatídica, pois conforme referiu Luís Marino, «Januário Justiniano de Nóbrega tinha pronta uma colecção de inéditos e não inéditos para dar à estampa, mas destruí-os pouco antes de ser assaltado por um ataque de alienação mental que o levou ao suicídio, despenhando-se por uma rocha, á beira-mar».
Acresce que como o seu tio Francisco Álvares de Nóbrega, Januário Justiniano de Nóbrega foi igualmente um homem que praticava os valores da solidariedade e da fraternidade, segundo lemos no Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses dos Sécs. XIX e XX, onde Luís Peter Clode assevera «que durante a pavorosa epidemia da cólera mórbus, em 1856, a sua acção ao lado do Governador Civil, foi de tal maneira benéfica, que mereceu ser louvado por esta autoridade por alvará especial».
Justiniano de Nóbrega, exerceu a profissão de Amanuense da Administração do Concelho desde 30 de Junho de 1837, até 8 de Janeiro de 1857, data em que foi nomeado escrivão dessa instituição. E como já referimos, notabilizou-se como um talentoso jornalista, colaborando em vários jornais, nomeadamente, «O Funchalense», «Campo Neutro», «Flor do Oceano», e «A Folha»; tendo ficado célebres as polémicas que publicou ao lado do seu amigo Dr. António Pita contra o Conde de Canavial; e um estudo de carácter histórico–estatístico sobre o Arquipélago da Madeira, que entregou ao Governador José Silvestre Ribeiro.
Outro importante trabalho que por si só o guinaria, aos píncaros da fama na cultura madeirense, foi prefaciar e organizar uma cuidadosa edição das «Rimas» de Francisco Álvares de Nóbrega, seu venerado tio e grande bardo de Machico.
Após o fatídico suicídio de Justiniano de Nóbrega foi divulgado postumamente, o seu ensaio intitulado «A Visita de Sua Majestade a Imperatriz do Brasil, Viúva, Duquesa de Bragança à Ilha da Madeira», enriquecido com um importante prefácio da autoria do poeta Júlio da Silva Carvalho; e ainda o artigo «A Fundação do Hospício da Sereníssima Princesa Dª Maria Amélia», ambos vindos à luz em 1867.
Para darmos um breve exemplo da elegância e delicadeza da prosa de Justiniano Nóbrega, reproduzimos a seguinte transcrição extraída do referido ensaio onde ele escreveu: - «Foi bem dramática a luta da Imperatriz do Brasil, para impedir que a morte viesse arrancar dos braços duma mãe carinhosa a sua querida filha, o único conforto que na vida lhe restava. (…) Eram quatro horas da madrugada. Em seus Paços, onde tudo era consternação e desalento, a Majestade, curvada ao peso da mais pungente dor, apertando entre as suas uma gelada mão, fitava, ávidos olhos num rosto macerado, inclinado para ela em leito que fora de agonia».
Finalmente, como poeta, Januário Justiniano de Nóbrega, editou, em 1860, um excelente livro intitulado «Flores Agrestes»; e na colectânea «Flores da Madeira», divulgada no Funchal, em 1871, por José Leite Monteiro e Alfredo César de Oliveira, publicou seis das suas primorosas poesias, de que passaremos a mostrar alguns excertos, que revelam, claramente, que tal como aconteceu com o seu glorioso tio de Machico; Justiniano Nóbrega também amava a Liberdade, e a sua querida Madeira, a quem, carinhosamente, chamava «Pátria».

Assim, no poema «Oração do Poeta», escrito em 1851, o vate enaltecia as belezas da sua dilecta Ilha, embora lamentasse a pobreza que afligia muitas das famílias do seu povo:

Uma terra assim tão linda
Em que parte o globo encerra?!
Terra assim não vi ainda
Linda como a minha terra:
Gôsto é ver d’esta campina
Correr água cristalina
Em cordões de prata fina,
Pela encosta d’ampla serra;

Gôsto é, sim, a vista alçar
Pelas penhas que estou vendo,
Que o céu parecem tocar,
Que vão d’abismos erguendo!
Nestes bosques verdejantes,
Nestas selvas flutuantes,
Nestes prados tão fragrantes
Minh’ alma s’está revendo! (…)

Nascer em berços de neve
Gosto é ver dia invernoso.
E o sol, que oculto esteve,
Surgir depois majestoso;
E lá do céu, meu anelo,
Despedir um raio belo
Por sobre grupos de gelo
Que em monte alveja formoso.

Que neste vergel de rosas,
Não há invernosa estação
Que, após noites tormentosas,
Não traga dias de Verão;
Nem n’esta plaga se viu
Despedir-se Inverno frio,
Sem nos dar noites d’estio
Belas como os dias são. (…)

C´o mesmo esplendor do dia
Brilha a noite! Eu vejo a serra,
Vejo o oceano qual via!
Desde o princípio da terra
Até onde a terra finda,
Uma terra assim tão linda
Eu não vi, não vi ainda,
Nem o globo todo encerra.

Do céu e da terra
Soberano Senhor,
Qu’és todo bondade,
Que todo és amor; (…)
Torna a minha pátria
Qual foi, florescente,
Oh! põe sobre a triste
Olhar complacente.(…)

Mais amor da pátria,
Senhor, nos inspira;
Amor pela terra
Que nascer nos vira;
Que já foi empório
D’imensa riqueza,
E é hoje o triste
Painel da pobreza!
De preces ingénuas
Te mova o fervor.
Revoca-me ao fausto
A pátria, Senhor!

Num outro poema intitulado «O Lago Do Trovador», também escrito em 1851, Januário Justiniano de Nóbrega, lateja com perfeito lirismo o seu amor à natureza, e trova num estilo modo romântico que faz lembrar o nosso «Camões Pequeno»:

Serei poeta? Talvez
Poeta o céu me fadasse!
Talvez um nome pomposo
À minha aldeia legasse.
Se à voz dos cisnes do Tibre
O canto meu ensaiasse. (…)

Cá num cantinho da terra,
De pobre choça habitante,
Nem tenho heróis que incensar,
Nem tenho rios que cante;
Mas tenho um lago formoso,
Que retrata o céu brilhante. (…)

Aqui no meu lago
O céu se revê,
Tornando-o safira,
De prata que é.
Espelho fulgente
D ‘extrema beleza,
Ao vivo retrata
Toda a Natureza. (…)

Perfumada aragem,
Que adeja ligeira,
Como a superfície
Lhe enruga fagueira!
E uma folhinha
Lá leva impelida...
É imagem fatal
D’esta minha vida,
Que assim me levarão
Mil doces enganos.
A bem dolorosos,
Cruéis desenganos!

Noutra poesia, intitulada «O Soldado do Mindelo», composta em 1854, por ocasião das exéquias à morte de Dª Maria II, em homenagem à Rainha, e também à Liberdade, e à causa dos livres, Januário Justiniano Nóbrega, clamava com emoção:

Voluntário fiel do Mindelo,
Porque assim a chorar magoado?
Tão afeito às cruezas da guerra,
Porque assim gemer desolado?
Onde está doutro tempo o valor?
Onde os brios d’ antigo soldado?

A teus olhos sumiram-se os montes
Tão virentes da pátria querida,
Quando d’ela te foste a imolar
Pela causa dos livres a vida:
E tal eras…que nem uma lágrima
Te rolou pela face incendida. (…)

Voluntário fiel do Mindelo,
Ergue a fronte que tens abatida.
Olha ao céu… acolá quanto é doce
Repousar do pungir d’esta vida!
Olha ao céu…acolá entre os anjos
Folga a tua rainha querida. (…)

Voluntário fiel do Mindelo,
Ergue a fronte que tens abatida;
Cesse o pranto qu’ as faces te inunda,
Cala a dor nesse peito oprimida.
Olha ao céu…acolá entre os anjos
Folga a tua Rainha querida.

Noutro longo poema escrito em 1850, denominado o «Apelido de Zarco», o nosso poeta, baseado na leitura da «História Insulana Lusitana» de Cordeiro, e no «Poema da Insulana» de Manuel Tomás, descreveu alguns factos, que segundo aqueles autores, explicam o apelido do primeiro Capitão-mor do Funchal, João Gonçalves:

Junto às traqueiras do Tanger
Gritam centos d’ infiéis,
Feros inimigos da Cruz,
Rebeldes de Cristo às leis.
Acodem lusos soldados,
À lei de Cristo fieis.

Gigante moiro a cavalo
Dos seus à frente saiu
E diz, enristando a lança,
Que tantos mil já feriu;
- Nazarenos! Raça vil!
Um por um vos desafio.

- Capitão! Daquele moiro
Quero a audácia castigar;
Cobardia o desafio
Fora em mim não aceitar –
Diz ao chefe um nazareno-
Já no ginete a montar.

Trava-se crua peleja
Entre os dois – moiro e cristão-
O moiro ao cristão encrava
A lança no coração
Em borbotões salta o sangue,
Cai morto o bravo no chão! (…)

Trava-se novo combate
Feroz, cruel, carniceiro; (…)
Um segundo nazareno
Cai morto como o primeiro! (…)

Já outros golpes se dão
Como os dois que o precederam
Morre terceiro cristão! (…)

- Capitão! Prossegue um moço-
Não tenho nome nem fama,
Obscuro soldado sou,
Meu valor ninguém aclama.
Que perdes se o infiel
Meu sangue também derrama!

Jovem! é de mau agoiro,
De mau agoiro este dia;
Mortos são já três guerreiros
De provada valentia.
Dar ao moiro um prazer mais!
Na verdade, isto injuria…

Capitão! Disseste bem,
É dia de mau agoiro
Mas não é desonra, não,
Cair morto aos pés d’ um moiro;
È desonra fraquejar
Ser cobarde é que é desdoiro!-

O Capitão imudece;
O jovem já tem partido;
Em menos de um credo volta
No seu ginete garrido,
Trazendo pelos cabelos
Cativo o moiro e ferido!

Soam entre os nazarenos
Atabales de alegria,
Nos arraiais dos cristãos
O folguedo principia,
Esgotam-se imensos copos
À vitória d’este dia.

Dom Henrique, nobre infante,
Cavaleiro o moço armou;
Chamava-se Zarco o moiro
Que o mancebo cativou,
Zarco também desde então
Este bravo se chamou.

E foi quem quebrou o encanto
À minha pátria querida;
Quem deu co’a perl´a dos mares,
Esta terra tão florida;
Quem descobriu a Madeira,
Vergel de aroma e de vida.

Por último, citaremos parte do canto «A Viúva do Artista e o Órfão»; que é uma poesia claramente influenciada pelas tragédias de Soares dos Passos, e muito ao gosto ultra-romântico, aliás em grande voga, no ano de 1859, quando Justiniano de Nóbrega escreveu as trovas que se seguem:

De artista que em flor morreu
Saudosa viúva sou;
Saudosa sim, que o amei
Como ninguém inda amou;
Ninguém …diz-me aqui no peito
Saudade que me ficou.

Desse amor tão casto e santo
Dois frutos, só, eu lhe dei;
Cobiçou-o Deus o primeiro
e quanto, quanto o chorei!
O segundo ei-lo em meus braços,
Para quê!? Céus! Eu não sei! (…)

Não sei, não; mágoas, tristezas,
Eis quanto a viúva tem;
Nem já na trémula mão
A gasta agulha sustem;
A agulha que nem a ela
Nem ao órfão já mantem. (…)

Apenas te vejo a ti,
Anjo de amor que gerei;
Por ti só que não por mim
Dia e noite costurei;
E quando deixar de ver-te
Nada no mundo verei.

Assim foi. Viúva e órfão
A penar continuaram;
Em um asilo a viúva
Em pouco tempo encerraram,
E para outro o filhinho
Dos braços lhe arrebataram.

Ausente d’ este a mãe triste
Tanto chorou e sofreu;
Tanta lágrima de sangue,
Tanto pranto ela verteu,
Que em breves dias, coitada!
Cegou de todo e morreu.

Como referimos, outro familiar de Francisco Álvares de Nóbrega que também se dedicou às musas chamava-se João Marinho de Nóbrega, que nasceu na freguesia de Santa Maria Maior da cidade do Funchal, em 18 de Julho de 1880, e faleceu em Santo António, a 8 de Março de 1954; e que foi filho de Januário Justiniano de Nóbrega Júnior, e de Dª Maria Virgínia Pereira de Nóbrega; e neto do supracitado poeta Januário Justiniano Nóbrega.
João Marinho de Nóbrega, frequentou o 3º ano da Faculdade de Direito na «Universidade de Coimbra», mas não chegou a licenciar-se, por motivo de ter adoecido gravemente. Mais tarde, durante o agitado período da ditadura de Sidónio Pais, foi vogal da «Câmara Municipal do Funchal»; tendo também exercido, o cargo de auxiliar da «Conservatória do Registo Predial do Funchal».
Luís Peter Clode no «Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses dos Sécs. XIX e XX», informa-nos que, nos últimos anos de vida, « JoãoMarinho de Nóbrega, foi químico-analista da Fábrica do Torreão, sendo à data do seu falecimento director do laboratório da referida fábrica».
Na vida literária, utilizou diversos pseudónimos, entre eles, João Liso, X, José Manuel Décio Braga, João Lopes, Azul e Branco, e Ohniram.
Como jornalista, João Marinho Nóbrega, durante um longo período, publicou crónicas no «Diário de Notícias», no «Diário da Madeira», e em «O Jornal»; que foram muito conhecidas e apreciadas, sobretudo, as intituladas Apostilhas, Comentários, Coisas Minhas, Croniquetas, Pinceladas, Um Pouco de Tudo, Garatuja, Notas do Dia, Com os Meus Botões, e Réstea de Sol. Também entrevistou, longamente, em 1943, o célebre Padre Cruz, e colaborou nos periódicos «Heraldo da Madeira», «O Jornal», «A Voz», «Os Novos Filhos», «Revista Esperança», e «Revista Portuguesa»; tendo ainda divulgado um opúsculo intitulado «Uma Entrevista».
Tal como o seu antepassado de Machico, João Marinho de Nóbrega também publicou poesias, que vieram à luz em diversos órgãos da imprensa, das quais escolhemos dois sonetos e uma canção que foram editados na «Musa Insular (Poetas da Madeira)» de Luís Marino.
Comecemos pelo melancólico, mas harmonioso soneto a que deu o titulo: «Despertando»:

Por onde andaste tu, meu pensamento,
Que bem dentro de mim eu sinto agora,
A falta que me faz o teu tormento,
Que me visita sempre, a toda a hora.

A padecer, por ti, acostumado
Tanto estou, que às vezes me parece
Um prazer, a dor que me tens dado.
Que ter a dor constante me apetece.

Desabafa comigo os teus anseios.
A tua negra mágoa, e a alegria
Dos teus ledos, fagueiros devaneios.

Já não me fazem mal as tuas queixas,
As novas que me trazes dia a dia,
Só me causas pezar, quando me deixas.

Em «Outono», e também muito ao gosto dos cânones estéticos do Romantismo, João Marinho Nóbrega, cantou a natureza, para através dela transmitir o seu pesaroso estado de espírito:

Já o azul do céu empalidece,
A noite é feia, é mais gelada a lua.
- É o turbado Outono que aparece
Sem tornar-me dif’rente a imagem tua.

De cada ramo as folhas vão caindo,
De cada folha brota uma saudade,
Tudo vai de saudades se cobrindo,
Só não vem para mim a soledade.

Estremecida alegria abençoada,
Vivam sempre comigo esp’ranças minhas
Mais puras que a neve imaculada.

Oh! não me abandoneis, visão querida,
Como partem agora as andorinhas,
Não parteis também vós da minha vida!...


A terminar, o mesmo lirismo nostálgico e romântico lateja nas quadras da canção «Líricas»:

Se eu chegar a ser velhinho,
Sabe-o Deus de quantos anos,
Hei-de ter muita saudade
Tecida com desenganos.

Olhos meus, olhos escuros,
Olhos noites sem luar,
Olhos tristes de saudades,
Olhos cegos de chorar.

O meu amor por ser grande,
Que pesar que ele me faz,
De tanto te amar anseio
Amar-te mais, muito mais.

Eu sei que choras de pena
Quando só mágoas te escrevo;
E eu nem ao menos sei
Quantas lágrimas te devo.

Francisco Álvares de Nóbrega - Camões Pequeno


Francisco André Álvares de Nóbrega que também foi conhecido pelo Camões Pequeno, segundo alguns autores teria nascido no sítio da Torre, em Machico; tendo passado a infância na casa dos progenitores localizada naquele concelho, na Banda D’Além, mais precisamente na Rua dos Moinhos, onde também consta que teria nascido, a 30 de Novembro de 1773, aliás como vem claramente expresso no seu Registo de Baptismo.
Era filho do 2º casamento de Domingos de Nóbrega Barreto, O Furão, que nascera no Funchal, na freguesia de Santa Maria Maior do Calhau, e de Dª Ana Rita de Sampaio, natural de Machico; onde casaram em 15 de Fevereiro de 1773.
Segundo informa a distinta investigadora Ivone Correia Alves no ensaio Para Uma Biografia de Francisco André Álvares de Nóbrega, o padrinho do nosso poeta «foi o Dr. João José Espinosa Martel (1746-1812), bacharel em Cânones, formado pela Universidade de Coimbra, professor de Gramática Latina no Funchal, mas natural e com residência principal em Machico»; casado com Dª Ana Martins Perestrelo da Câmara, herdeira do vínculo do Caramanchão de Machico e de outros bens; facto que nos leva a presumir, com segurança, que os pais do escritor seriam pessoas consideradas e estavam bem relacionados.
Na verdade, o progenitor do nosso poeta era sapateiro e exercia a função de Contestável da Fortaleza de São João Baptista, cargo meramente representativo, mas de muita importância, pois competia-lhe vigiar e dar aviso com fachos ou búzios, sempre que assomassem à costa armadas de corsários; acontecimento que naquela época era frequente e muito perigoso para as populações e os seus haveres.
Podemos assim dizer que embora não fosse filho da classe dominante, o escritor pertencia à camada média machiquense, e por consequência, viveu uma juventude normal e sem grandes privações materiais, na vila de Machico, onde circundado por uma deslumbrante paisagem, teria sido feliz, em pobre, sim, mas paternal morada, bem abrigado por gente simples, respeitada e trabalhadora, e espairecendo junto ao mar azul da mais bela baía da ilha, como, aliás, deixou bem assinalado num precioso soneto:

Na fralda de dois íngremes rochedos,
Que levantam aos Céus fronte orgulhosa,
Existe de Machim a Vila idosa,
Povoada de escassos arvoredos.

Pelo meio, alisando alvos penedos,
Desce extensa Ribeira preguiçosa:
Porém tão crespa na estação chuvosa,
Que aos Íncolas infunde respeito e medos.

Às margens dela em hora atenuada,
Vi a primeira luz do sol sereno.
Em pobre, sim, mas paternal morada.

Aos trabalhos me afiz desde pequeno,
O abrigo deixei da Pátria amada,
E vim ser infeliz noutro terreno.

Depois de aprender as primeiras letras em Machico, seu pai permitiu que viesse para o Funchal, com apenas com nove anos de idade, para se empregar na loja de fazendas do abastado comerciante Marco João de Ornelas, que foi descobrindo que o seu jovem protegido, além de desfrutar de muita sensibilidade e criatividade, possuía grande talento para escrever e poetar, e talvez por isso, em Janeiro de 1793, quando Francisco Álvares de Nóbrega teria cerca de 20 anos de idade, propiciou-lhe a possibilidade de matricular-se no Real Seminário de São João Evangelista, que então era dirigido pelos jesuítas.
De facto, apesar do nosso poeta ter escrito que o seu patrão lhe tinha ministrado ensinamentos e instrução, tudo nos indica que antes de encetar estudos mais avançados, aprendera a ler, a escrever e a contar em Machico; e só depois, o seu protector proporcionou-lhe outros conhecimentos e saberes, atenção que Francisco Álvares de Nóbrega sempre enalteceu com gratidão:

Sisudo Ornelas meu, em cujos lares
A tenra flor dos anos meus abriu,
Flor que, ao depois, do tempo a mão cobriu
De hórrido luto, e de fatais pesares.

Transpondo o espaço de alongados ares,
Leve sinal de gratidão te enviu,
Da minha história o entre-cortado fio
Verás, quando este livro folheares.

Ao ler os duros males que lastimo,
Não afogues em mar de novo pranto
Planta nutrida ao teu afago e mimo.

Vingam-me as musas de infortúnio tanto;
Afugento a Desgraça, a dor suprimo
Quando ao toque da Lyra a voz levanto.

Naquela época em que se respirava uma atmosfera de mudança, e fervilhavam surdas controvérsias contra a aspereza e o conservadorismo da Velha Ordem, Francisco Álvares de Nóbrega, influenciado pelos ventos revolucionários desses tempos, confidenciou ao seu amigo e colega de Seminário João Mendes da Silva, que se sentia aferrolhado e oprimido no Colégio jesuíta, onde lhe aplicavam carradas de arcaísmos em enfadonhas aulas de Teologia e Gramática Portuguesa e Latina:

Caro colega meu, Mendes querido,
Lenitivo suave a meu cuidado,
Quando em austero asilo aferrolhado
Nos verdes anos meus era oprimido.

Pela mão da verdade aqui tecido
C’as próprias tintas, que moera o fado,
O quadro vê daquele antigo estado,
Em trabalhos fatais reproduzido.

O que é a desventura enfim repara;
Depois que desandou a roda sua,
Oh! como, amigo, raras vezes pára!

Tem sido a minha vida amarga e crua,
De martírios sem fim cadeia rara,
Que de hora em hora sem cessar gradua.

Podemos compreender melhor a aversão que Francisco Álvares de Nóbrega nutria contra o retrógrado sistema de ensino dessa mirrada e estéril sociedade, através dum belo soneto que também nos legou:

Terreno estéril, árido e mirrado,
Dos mais terrenos, por meu mal, desdouro,
Tu convertes em peste a chuva de ouro,
Que entorna sobre ti Jove Sagrado

Terreno ingrato, onde mal é plantado,
Murcha, definha e cai por terra o Louro,
Tu, podendo das graças ser tesouro,
És só de espinhos ásperos juncado.

Atado o cepo vil da Independência,
Em ti o Sábio vê com dor, com luto
Amortecer-se a luz da Sapiência.

O grande Deus, que em ti se adora, é Pluto;
Do seio maternal brota inocência;
Crimes, crimes cruéis são só seu fruto.

Todavia, como relatou o brilhante investigador Daniel Pires numa conferência realizada em Machico, intitulada Francisco Álvares de Nóbrega: Retrato dum Pensador, o nosso poeta compensava esses constrangimentos bebendo, absorto e mudo, as brilhantes aulas do professor de Retórica e membro activo da maçonaria, cónego Deão da Sé João Francisco Lopes da Rocha, que o marcavam, particularmente, pelo seu discurso claro e pelos seus ideais filantrópicos, afeição que ficaria bem patente num emocionante poema que o nosso poeta lhe dirigiu:

Cícero funchalense, eu te saúdo,
E grato cá de longe a voz alçando,
Te agradeço as lições que bebi, quando
Comecei a gostar o doce estudo.

Elas escoram o alentado escudo
Com que espanto este mal, que estou passando,
No meio dos trabalhos recordando
Ditames, que te ouvi absorto e mudo.

Tu me dispusestes o loiro que me enrama,
Que nem o raio cresta, nem me consome,
Apesar da desgraça, que me acama.

Com a minha glória a tua glória assome,
Participa também da minha fama,
Ouvido seja, a par do meu, teu Nome.

Todas essas circunstâncias, e muito especialmente a sua inclinação para a poesia repentista, conjugada com a falta de apego pela carreira eclesiástica, determinaram que muito cedo fosse conhecido como poeta de mérito, e intelectual com pendor para conhecer e divulgar as mais modernas correntes de pensamento da sua época, então muito marcadas pelos ventos da Revolução Francesa, e pelo pensamento rebelde e liberalizante de Voltaire, dos enciclopedistas, e doutros filósofos revolucionários.
Simplesmente, para grande desventura do jovem escritor, em todo aquele período era rigorosamente proibida a livre expressão de tais doutrinas, punidas pela legislação opressora da rainha D. Maria Iª, e sobretudo pela actividade policial do Intendente Diogo Inácio Manique - terrífico reaccionário que, acolitado pelos seus informadores e bufos, então chamados Moscas, reprimia qualquer tentativa progressista, que agitasse, minimamente, os parâmetros ideológicos em que assentava a Velha Ordem.
E, quando já frequentava o 3º ano, e tinha sido admitido a ordens menores, impelido pelo entusiasmo e pelas verduras da juventude, Francisco Alvares de Nóbrega se atreveu a satirizar o bispo D. José da Costa Torres, figura conservadora e doutorado em cânones pela Universidade de Coimbra; este, não suportando a irreverência e a crítica mordaz dos seus versos, ordenou a expulsão do poeta do Seminário e manobrou para que ficasse preso nos cárceres do regime; acusado de pertencer à maçonaria, e de ser um perigoso pedreiro-livre, doutrinado pelo seu mestre e mação, Cónego Dr. Lopes Rocha, fidagal inimigo do Bispo, com quem se tinha envolvido em ruidosas polémicas, que só não atingiram consequências mais extremas, pelo facto de, em 23 de Junho de 1792, ter sido promulgado um edital que perdoava os que se tinham alistado nas lojas maçónicas.
É, assim, um facto indiscutível o papel decisivo do bispo D. José da Costa Nunes, na expulsão do nosso poeta do Seminário e na sua posterior prisão. De notar até, que devido às crueldades e à desmedida opressão exercida sobre os defensores das ideias progressistas, temendo fortes represálias e vinganças, esse prelado saiu, precipitadamente, e quase em fuga da Madeira, a 6 de Outubro de 1976, sem se despedir de pessoa alguma, nem do Santíssimo Sacramento, ocorrência que Francisco Álvares de Nóbrega exprimiu com regozijo:

Alvíssaras, Funchal, da opressa frente
Arranca enfim o ramo d’acipreste;
As alvas roupas de alegria veste;
As faces banha de prazer veemente!

O flagelo tenaz da humana gente,
Mais terrível que fome, guerra e peste
Por decreto fatal de Mão celeste
A seu pesar te deixa em paz contente!

Era um «santo» Varão!... Viver devia
Lá no calado horror das mudas selvas,
Onde nem sequer visse a luz do dia;

Brutas feras tratar, manter-se em relvas,
Esse aborto da torpe hipocrisia,
O Bispo do Funchal, eleito d’Elvas.

Debruçando-se sobre esses acontecimentos, num ensaio denominado Notícia Biográfica e Literária – Francisco Álvares de Nóbrega, Jaime Moniz referiu que o poeta foi despedido do Seminário, indo preso para o Aljube, daqui para Lisboa, por causa de uns versos que apareceram, digo, se ouviram dele.
Consequentemente, estamos certos que pelo menos daquela vez, o escritor esteve detido no já demolido Aljube do Funchal, antes de partir para o continente, aliás como ele próprio afirmou num soneto enviado ao Dr. Luís António Jardim, pedindo que o leia sem desmaio, e pesares:

Se d’entre as lidas do enredado foro,
Q ue das Musas louçãs desdenha o mimo, (…)

Se do metro suave o som canoro,
A cujo encanto o gasto alento animo,
Inda sabe em teu seio achar arrimo,
E a Lyra adoras, bem como eu adoro:

Acolhe brandamente em teu recinto
A escassa produção com que à luz saio,(…)

De mim só fala, lê-lo sem desmaio
Porque eu fiz por tratar do mal que sinto,
Sem me queixar de quem me forja o raio.

Contudo, a ilustre investigadora Ivone Correia Alves, num brilhante estudo lido em Machico intitulado Para Uma Biografia de Francisco André Álvares de Nóbrega, começa por referir que através do Registo de entradas e saídas dos alunos, ficamos a saber que, em 1796, e após três anos de Seminário, Francisco Álvares Minorista, fora despedido indo prezo para o Aljube, daqui para Lisboa onde teve Sentença de degredo (…) por cauza de huns verços que appareceram, digo se ouvirão por boca delle.
Todavia, essa distinta historiadora acrescenta que encontrou nos Arquivos da Torre do Tombo, datado de 1798, um Sumário contra Francisco Alvares, por apelido Camoens, morador na cidade do Funchal ilha da Madeira. Porém, as razões dessa sindicância, de 9 de Outubro de 1798, não são as mesmas que o registo do Seminário invocou. Referem-se sim, a uma denúncia à Mesa do Santo Ofício, no Funchal, apresentada por Tomás Ferreira Saldanha, proferindo que ouviu dizer a José de Menezes, Sargento do Terço dos Auxiliares, que Francisco Álvares, Colegial que fora no Colégio de S. João Evangelista (…) proferira preposições ímpias, heréticas, tais como que não havia Eternidade (negando a imortalidade da alma); Nª Sª não fora Virgem porque era impossível que hua molher parice e ficasse virgem; negando ainda a Existencia do S.mo Corpo de Christo na Ostia Consagrada.
Note-se que esse deplorável delator nada viu e nada escutou, pois apenas repetiu o que afirma ter ouvido a um tal Menezes, facto que, segundo Alberto F. Gomes, anuncia que a atmosfera que pairava, e o modo como eram feitas as denúncias, levam-nos a crer que as palavras atribuídas ao poeta, no documento acima transcrito, não correspondem inteiramente à verdade, mas envolvem um propósito de empurrar o vate para o cárcere, evitando, por outro lado, que continuasse a destilar seu humor sobre as entidades visadas.
Naquela difícil conjuntura, para conseguirem a libertação do nosso poeta, foi importante o apelo de alguns amigos influentes; nomeadamente a influência decisiva do novo Bispo do Funchal, D. Luís Rodrigues de Villares, que se tornou protector do escritor, e a quem Francisco Álvares de Nóbrega enalteceu num dos seus mais belos e comovidos sonetos:

Prelado Excelso, o Nóbrega doente,
Cá das margens do Tejo, onde o remistes,
Vai, sobre as asas de seus versos tristes,
A beijar-vos humilde a mão clemente.

Ainda se lembra da tenaz corrente,
Que de seu roto pé, Sábio despistes,
Quando em cárcere abjecto em luto o vistes
Dos pais, do bemfeitor, da Pátria ausente.

Só vós o fado meu vencer pudestes,
Só vós os amargos dias me adoçastes,
Do vosso antecessor mimos agrestes.

Conheça o Mundo o quão diverso andastes;
Aquele me espancou, vós me acolhestes;
Aquele me prendeu, vós me soltastes.

Em 1797, ultrapassada a agonia dessa primeira prisão no Aljube do Funchal e nas masmorras do Reino, e recuperada a liberdade querida e suspirada, Francisco Álvares de Nóbrega, segundo refere Daniel Pires no ensaio que já citamos, ter-se ia encantado pelo cosmopolitismo de Lisboa, onde as tripulações dos navios de mercadorias contribuíam para impregnar a cidade de um colorido peculiar e de um toque de subversão, pois eram frequentemente portadoras de panfletos clandestinos, de gravuras e de obras que sugeriam formas distintas de encarar a política, a sociedade e a própria natureza humana. A trilogia emblemática da Revolução Francesa – igualdade, fraternidade e liberdade – era acenada mais ou menos sub-repticiamente (…), nos cafés e pelas ruas; embora fosse duramente reprimida pelo Intendente Pina Manique, com o empenho dos seus Moscas.
Por tudo isso, Daniel Pires, arrematou que a adesão do poeta de Machico à maçonaria, na capital do reino, constituiu um passo previsível, tendo em consideração o seu percurso de vida e o ambiente sociopolítico existente na sua terra natal. (…) Consequentemente, não será precipitado, afirmar que Nóbrega terá envidado, durante aquele período, múltiplos esforços para a disseminação dos ideais filantrópicos que a ideologia maçónica encerra.
Contudo, para além dessa militância política, o nosso escritor de Machico cultivou, sobretudo, a poesia, visto que, entre 1801 e 1802, vieram a lume os quatro folhetos das suas Rimas.
Aconteceu até, que de forma corajosa e de certo modo atrevida para os constrangimentos reaccionários da época, Francisco Álvares de Nóbrega chegou a dedicar um interessante poema a Voltaire, onde, veladamente, patenteava a sua inclinação pelo estro sublime e os alto escritos desse célebre pensador francês:

Se lá de quando em quando, Águia do Sena,
Sobre os ditames da moral mais pura,
Não entornasses a letal doçura,
Que teus altos escritos envenena;

Se o Sol da Graça fúlgida, serena,
Iluminasse igual tua escritura:
Quem não te levaria à sepultura
Amplos tributos de saudade e pena!

Que vezes pela noite extensa e fria,
Curvado sobre ti, absorto exclamo:
Oh alma grande! Assim não fora ímpia!

Com teu estro sublime ali m’ inflamo;
E abrasado na luz que o acendia,
Sem teus erros amar, seus vôos amo.

Glorificou, também as grandes conquistas que iam acontecendo nas investigações científicas, e, claramente, rendeu homenagem a Newton:

Ave real, que a esfera demandando,
Sobre o clima bretano o voo erguias,
E de perto a tratar co´os astros ias,
Leis infalíveis a seu giro dando…

Porém, nos últimos meses de 1802, piorou, significativamente, a insidiosa elefantíase que afligia o infeliz poeta de Machico, que além de suportar dores cada vez maiores, e ver o seu rosto cada vez mais estigmatizado, sofria com desgosto, o receio de contágio patenteado por alguns dos seus amigos, que chegaram a abandoná-lo. Amargamente, Álvares de Nóbrega lamentava:

(…)
Entre desgosto e desgosto
Caminho ao meu triste fim,
Como se já para mim
Da vida o Sol fora posto;
As manchas que tem meu rosto,
Da morte são já matizes,
Meu mal tem fundas raízes.
E quer a acerba desgraça
Que eu brilhante época faça
No livro dos infelizes.

Quem deste fatal volume
Quizer combinar os factos,
Em mim os tem mais exactos,
Mais fieis do que presume;
A minha vida resume
Todo o rigor d’impios fados:
Enfim se forem lembrados
Nos tempos mais horrorosos
Se julgarão fabulosos
Os meus dias desgraçados.

E para cúmulo da tragédia, Daniel Pires refere, que a tudo isto, juntou-se um outro facto igualmente lancinante: a própria amada evitava-o:

Nos olhos o pranto ferve,
No coração cresce a dor,
E com males da fortuna
Se mistura o mal de amor...

Assim, mesmo com as dúvidas de mero pormenor apontadas por Ivone Correia Alves, é absolutamente certo que o nosso poeta esteve preso, pelo menos uma vez, no Aljube do Funchal e pouco depois em Lisboa.
Após voltar à liberdade, devastado pela doença, e até dos mesmo seus abandonado, Francisco Álvares de Nóbrega encontrou protecção e abrigo na casa do seu amigo e livreiro Manuel José Moreira Pinto Baptista, onde mais tarde, na madrugada de 16 de Janeiro de 1803, tornaria a ser detido, numa altura em que se encontrava cada vez mais doente, e já acamado há quatro meses. Deste modo, em 1803, - segundo aquela investigadora concluiu num importante estudo sobre o julgamento de Álvares de Nóbrega pelo Tribunal do Santo Ofício, a que chamou Inquisição de Lisboa – Processo nº 15764 – o infeliz poeta de Machico voltou à prisão na Cadeia do Limoeiro, durante cinco longos meses e seis dias, sem julgamento, apesar de se encontrar doente, como ele próprio descreve e afirma:

Um mortal sem valia, um desgraçado,
Que em pobre leito há meses geme aflito,
Que traz na própria face o mal escrito,
Até dos mesmos seus abandonados,

De agudíssimas dores volteado.
Aos céus mandando inconsável grito,
Que desordem, que crime, que delito
Cometer poderia, ou que atentado?

Juízo dos mortais, quanto te iludes!
A menor sombra tuas vozes borra,
Tu confundes os vícios c’o virtudes!

E sentirei em fúnebre masmorra
De parca desumana os golpes rudes,
Sem ter piedosa mão que me socorra?

Depois do período de prisão preventiva, Ivone Correia Alves refere que Francisco Álvares de Nóbrega, sempre enclausurado e no Segredo, teve um primeiro processo, com as datas extremas de 16 de Janeiro e 21 de Junho de 1803, que teria corrido apenas pela Cadeia do Limoeiro; e que a seu próprio pedido, foi julgado num segundo processo, pela Inquisição, a partir de 22 de Junho e até 13 de Agosto.
De notar, que nesse longo tempo de tormentos, mesmo apesar de estar «às portas da morte», o nosso infeliz poeta de Machico, além de ter sofrido horripilantes torturas físicas, jazeu no «Segredo», dormindo no chão, supliciado com algemas e grilhões. Por outro lado, nos interrogatórios praticados pela Inquisição, o réu foi ainda submetido a uma permanente e tenaz tortura psíquica, para que confessasse as suas culpas.

Mas, antes de nos debruçar, um pouco mais, sobre o Processo da Inquisição, com o número 15764, lembramos que Francisco Álvares de Nóbrega esteve preso no cárceres do Limoeiro, tal como aconteceu com Bocage, seu companheiro de clausura, de quem, na altura em que foi detido, possuía o poema manuscrito intitulado Pavorosa Ilusão da Eternidade, conforme confessou ao horrendo Tribunal do Santo Ofício, e ao qual dedicou três belos sonetos, de que extraímos algumas passagens:

Versos, que produzi, Cantor do Sado,
Ao tinir do grilhão áspero e duro,
Em cadafalso infame, hórrido, escuro,
A diversas paixões abandonado;

Vão, como os teus, em tempo desgraçado.
Ministrar novo pasto ao Zoilo impuro. (…)

E num outro poema também dedicado ao poeta de Setúbal, o nosso Camões Pequeno clamava:

Ao ler os Versos teus, prezado Elmano,
Teus versos, meu tesouro e meu feitiço,
Quanto um Augusto para ti cobiço
Que à Glória excelsa os elevasse ufano! (…)

Ainda noutro luzente soneto, Francisco Álvares de Nóbrega, voltou a demonstrar, a sua profunda admiração por Bocage:

Sem par Elmano, a quem do Pindo a chave
Franqueara o Pastor do loiro Amfriso,
Quanto mal te apontava ao rosto liso
A sombra, que afugenta o branco ignave;

Mana dos lábios teus néctar suave,
Se copias de Armia o doce riso;
Fala por tua boca um Deus diviso,
Se tratas da Moral sisuda e grave.

Sobre as asas reais, cria inda implume
Águia possante pouco a pouco exalta,
Té que a faça do Phebo o lume:

Assim teu metro, que meu estro esmalta,
Me convida a subir da Glória ao cume,
E o ensino me dá, que inda me falta.

Retomando a análise ao Processo nº 15764 da Inquisição, recentemente estudado por Ivone Correia Alves, esta começa por informar que se trata dum volume incompleto e restaurado, com vinte e oito fólios, com data de abertura a 22 de Junho e encerramento a 13 de Agosto de 1803; e que como refere Borges Coelho, deveria dividir-se, em duas partes: a primeira reunia a documentação anterior à prisão do réu; e a segunda agrupava as folhas que testemunhavam indirectamente a via-sacra dos cárceres até a marcha do auto-da-fé. Todavia, o processo de Francisco Álvares de Nóbrega, não tem a primeira parte, e a segunda não está completa, talvez porque atendendo à terrível doença e ampla «confissão»; o Príncipe se tivesse apiedado e ordenado a soltura do réu.
Logo na «abertura» dos autos, o representante do Inquisidor refere, que foi o próprio poeta, já preso e inquirido há mais de cinco meses no Limoeiro, quem tomou a iniciativa, de através do seu confessor, enviar à Mesa do Santo Ofício, o pedido para ser julgado pela Inquisição. E, na verdade, grato a esse confessor, Nóbrega dedicou-lhe um comovente soneto:

Palinuro Sagrado, oh, como absorto
Ao ver-vos fica o meu batel por certo!
Meu náufrago batel, que sábio e esperto
Vindes guiar da salvação ao porto.

De mim se apossa um divinal conforto
Á proporção que vos chegais mais perto;
Vós dourais da existência o fio incerto,
Vós arrancais da fria campa um morto.

Imagem do meu Deus, ministro augusto,
Tanto ímpio quebranta a vossa vinda,
Quanto conforta e fortalece o justo.

Minha interna aflição convosco finda,
Já o transe final me não dá susto;
Graças, graças aos céus! Não morro ainda.

Nos fólios seguintes, o poeta começou por mencionar toda a sua genealogia, com a curiosidade de apenas lembrar-se do nome dos pais e do avô materno; em interrogatórios, bem longos, se atendermos ao estado de saúde do réu; e sempre torturado física e psiquicamente; segundo refere Ivone Correia Alves.
No decurso das inquirições, Francisco Álvares de Nóbrega, exortado para confessar as seus erros, respondeu que tinha escrito nas três folhas que lhe deram, a totalidade do que se lembrava, mas instado e atormentado, sibilinamente, pelas constantes advertências do Comissário da Inquisição, que ameaçava que só seria melhor tratado, se abrisse os olhos da alma e explicasse a totalidade das suas ofensas, e tudo o que sabia da Sociedade dos Pedreiros Livres, Nóbrega foi pedindo mais folhas, e outras mais ainda, afim de registar todas as suas culpas; ao mesmo tempo que implorava que tivessem piedade e fossem misericordiosos com ele.
E o certo, é que o poeta preencheu doze folhas e meia com a confissão e denúncia, dos mais pequenos pormenores da sua vida, nomeadamente onde e o que estudou, que livros possuía, os conhecimentos religiosos, os seus escritos, leituras, amigos, pensamentos, viagens, e, obviamente, tudo o que sabia e pensava sobre os pedreiros livres, e da sua actividade em Portugal e no estrangeiro.
Muito em resumo, ficamos a saber da leitura dos autos, que Francisco Álvares de Nóbrega foi baptizado pelo Vigário de Machico; que Nossa Senhora da Conceição era sua madrinha; que foi crismado em Machico pelo bispo D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, tendo sido padrinho da crisma o Padre Matias do Nascimento, que se supõe ser seu parente por via materna; que frequentava as Igrejas, ouvia Missas e Pregações, se confessava, Comungava e fazia todos os mais actos e obras de Católico; que sabia todas as orações; que saio da sua pátria por três vezes para esta Corte, e desta foi por oito dias a Coina e ao Estoril em razão de tomar aí os banhos, e por passeio algumas vezes a Cascais; que esteve preso no Aljube, mas alcançou-lhe perdão, e o foi soltar o Bispo D. Luís Rodrigues Villares; que nenhum dos seus ascendentes foi julgado pela Inquisição; e que além do citado manuscrito de Bocage, leu o «Pope», emprestado pelo Secretário da Ilha da Madeira, João Marques Caldeira; Rousseau; o «Sistema da Natureza», emprestado por um moço de Setúbal primo dum boticário chamado José António Uxorio morador na Rua dos Cordoeiros para diante da Calçada de S. João Nepomuceno; e «Épocas da Natureza», emprestados por Manuel Ferreira, oficial de Arquitectura, morador na Rua dos Fanqueiros.
Perguntado nesse Processo 15764, porque se afirmou mação, e outros pormenores sobre as mais pessoas que declara; Francisco Álvares de Nóbrega disse que por ser constante entre os Maçãos que Melchior Manuel Curvo Semedo era venerável da Loge União, como declarou no adicionamento à sua Confissão, e achando-se em necessidade e precisado de todo Socorro, se lembrou de procurar o dito Semedo, esperando que dando-se lhe a conhecer por Sócio da Maçonaria, lhe prestasse algum donativo. (…) E voltando pela resposta, lhe dissera o tal Semedo que fosse falar com Francisco Xavier Torrezão a quem tinham dado ordem, como Secretário da Loge. (…) Que este era também o objecto, porque fora procurar José Sebastião por mandato do mesmo Semedo. (…) Que idêntico motivo o obrigou a declarar-se Mação com o Desembargador Maldonado; porém que de nenhum recebera o mais pequeno auxilio. Declarou ainda que conhece o sobredito Prior dos Anjos, por ser tido, e reputado Sócio da Corporação Maçónica pelos membros dela, mas nunca falou com ele, nem sabe quem falasse.
Seguidamente, Nóbrega afirmou que nunca se filiou noutra loja maçónica, além da tal que o dito Maurício estabeleceu, e para que o convidou, como já fez patente na sua Confissão. Todavia, dissertou sobre as lojas do Grande Oriente de Londres, Berlim, Roma e que circunstâncias sabe a esse respeito, nomeadamente, as ligações que um tal Hipólito tem tido com elas; declarando que na Corte há seis ou sete mações, mas quais sejam e no que consistem os seus Mistérios e Segredos, ele o ignora, por ser coisa absolutamente vedada nessa Sociedade; embora fosse voz corrente, entre eles, que em Lisboa haviam doze mil mações. E quanto ao conceito que forma dos Segredos e Mistérios reservados só aos Cavalheiros do Ultimo Segredo, (…) presentemente está persuadido não ser esta Sociedade tão lícita e conforme as Leis do Estado e da Religião, como seus sócios forsejam inculcar aos que pretendem atrair à mesma…
De novo, pede piedade e misericórdia, não só em atenção ao seu verdadeiro arrependimento mas à dilatada, penosa, e cruel prisão por que tem passado, e está sofrendo, e ao deplorável estado de sua saúde.
Contudo, sempre admoestado, por diversas vezes, para continuar no exame da sua consciência; ainda prestou algumas declarações sobre as organizações maçónicas, e torna a dizer que nada mais sabe. Termina afirmando que durante alguns anos, devido aos sofrimentos porque passou, alimentou a ideia de que não podia haver um Deus de bondade e justiça, pois permitia o vexassem e punissem tão cruelmente sem fulminar o raio contra os opressores da sua inocência; mas que nunca dera escândalo de maior. Todavia, reconhece na sua última infelicidade um evidente castigo do mesmo Deus a quem tinha ofendido tão sacrilegamente, prometendo não voltar a ter tais pensamentos, convencido de que só de Deus dimanam bens, e males, morte e vida, conforme o sentimento Sábio…
Resta lembrar que mesmo durante o julgamento no Tribunal do Santo Ofício, após os ignóbeis interrogatórios, o nosso desditoso poeta era arremessado com inaudita crueldade para o «segredo» do Limoeiro - terrível enxovia onde supliciado nem cama tinha para se acostar; e na qual suportou situações deveras apocalípticas:

(…)
A um lado um triste arremessava a custo
Algema pertinaz de sangue cheia,
Outro mostrava em comprimida veia
Roxeado vergão no pé robusto.

Desta cena esgotando o trago azedo,
Por esconso alçapão me arrojo abaixo
Onde foi dar a hórrido segredo. (…)

Segundo refere Alberto F. Gomes, o nosso poeta de Machico, durante o longo período de prisão, dirigiu-se em verso a vários protectores, entre eles um britânico e enaltece os que o atendem ou a seu favor se pronunciam. Ao Regente D. João VI, Príncipe do Brasil, também dedicou da cadeia do Limoeiro, 15 sonetos impetrando o perdão.
Começa por solicitar clemência e proclamar que não tem outro Deus, além do cristão:

Ah, Príncipe! E será, será possível,
Que não vos causem o menor abalo
Os ais que solta o íntegro vassalo
Neste hediondo cárcere terrível?

Mostrar-vos-eis acaso ainda insensível,
Quando a verdade, vos atesto e falo?
Olhai, Senhor, que de aflição estalo
Olhai que toco a meta impreterível. (…)

Não conheço outro Deus de Jove abaixo;
De vós só é que pende eu ser ditoso,
Seja, qual meu delito, o meu despacho.

Depois, protesta que não havia cometido qualquer crime ou delito, e fez questão de demonstrar que respeitava a Monarquia:

(…)
Sei que o Rei é porção da Divindade;
Rendo-lhe a adoração, que lhe é devida;(…)

Detesto a ingratidão, choro a violência,
Amo o nobre, o plebeu, o alto, o baixo
No estado em que os pôs a Providência.

E se me espreito da Razão co´facho
Se meto a mão na própria cosciência
Em minha vida um crime só não acho.

Com sentido desespero, Francisco Álvares de Nóbrega, protesta a sua inocência:

Príncepe Excelso, em lúgubre masmorra
A que jamais dá luz do Sol o facho,
Geme ao som do grilhão infame e baixo,
Sem ter piedosa mão, que me socorra.

Por mais que pense e que discorra,
Em minha vida um crime só não acho,
Seja qual meu delicto, o meu despacho
Que me soltem, mandai, ou que enfim morra.

Quem culpa cometeu, é bem que pague,
Em cadeia fatal, que o pé lhe oprime
Com lágrimas de dor embora alague.

Porém não consintais que se lastime
Na mesma estância, e em confusão se esmague
A singela inocência a par do crime.

E acaba pedindo a sua libertação; pois a quem tanto pode, é pedir pouco:

Príncipe suspirado, áurea vergonta
De um ramo, cuja sombra o Mundo abraça.
De quem a Lusa História, inda que escassa,
Mil glórias narra, mil prodígios conta. (…)

De vós não quero mais que alguns espaços,
Em que às Musas me dê, por quem sou louco,
Quebrada a algema, que me estreita os braços.

Consenti que eu melhore o canto rouco,
Fazei-me estes grilhões em mil pedaços,
A quem tanto pode, é pedir pouco.

Sabemos ainda que o seu grande amigo, Manuel José Moreira Pinto Baptista, em cuja casa o poeta estava acolhido, no malfadado dia em que foi preso pela última vez, também moveu vastas diligências para que libertassem o inditoso vate de Machico, que vivia aterrado; numa situação muito idêntica à tão bem resumida, dois séculos antes, pelo genial António Ferreira.

A medo vivo, escrevo e falo,
Hei medo do que falo só comigo,
Mas inda a medo cuido, a medo calo…

Com grande dignidade, mas comovido, o nosso Camões Pequeno anunciava a esse dedicado amigo do coração:

Não lastimes, Baptista, a minha sorte,
Nenhum abalo o dano meu te faça;
Batem em mim os golpes da desgraça,
Bem como as ondas num rochedo forte.

Ver-me-às tranquilo sujeitar ao corte.
Que da vida a cadeia desenlaça. (…)

Os homens, com tormento agudo e grave,
Podem fazer que desta estância abjecta
Meu sangue, espadanando, os tetos lave;

Podem no coração cravar-me a seta,
Porém não extorquir-me a paz suave,
Com que o Justo transpõe da vida a meta.

Até que, não sabemos a data precisa em que Francisco Álvares de Nóbrega foi posto em liberdade, mas podemos afirmar que, em fins de 1803, o nosso poeta publicou a tradução duma novela da autoria de Florian, intitulada Sélico ou Heroísmo Filial, o que nos dá a certeza que nessa era já estaria solto, sendo também certo que, em 13 de Agosto de 1803, o processo da Inquisição foi encerrado, abruptamente.
Nos cerca de três anos de vida que lhe restaram, o nosso poeta de Machico, aumentou, retocou, e editou as suas primorosas Rimas, que ofereceu ao livreiro que o acolhera na sua casa, Manuel José Moreira Pinto Baptista. Ainda teve tempo para traduzir, além da indicada novela de Florian, o livro de Fulchiron, Algar e Ainorex- Os Efeitos da Funesta Ambição de Um Pai; e uma novela de Mr. Gardy intitulada O Poder da Primeira Inclinação.
Até que, em dia incerto de 1806, sempre infeliz, minado e desfigurado pela lepra que grassava cada vez mais, Francisco Álvares de Nóbrega, cansou-se de lutar contra as adversidades, o infortúnio e os males do amor; e com apenas 33 anos de idade, na casa do amigo dilecto Baptista, à Calçada de São João Nepomuceno em Lisboa, depois de se fechar no quarto e enrolar-se num lençol que coseu até aos ombros, preparou-se para dormir o último sono, e sem mais alentos, quiçá em Paz, suicidou-se, ingerindo grandes porções de láudano, que antes havia comprado na botica.
Esventrando essa trágica morte, o jornalista Januário Justiniano de Nóbrega, sobrinho do nosso infeliz poeta e avô do poeta João Marinho de Nóbrega, refere que o seu tio levantou a própria eça no silêncio da noite, rodeou-se dos livros a que consagrava as longas horas de insónia, pôs à cabeceira os seus escritos, e libando, como Sócrates, a bebida fatal, adormeceu no seio do Criador.

Feita esta breve abordagem à trágica existência de Francisco Álvares de Nóbrega, resta-nos precisar que o poeta viveu entre finais do séc. XVIII e princípios do XIX, numa altura em que o cultivo da vinha em regime de quase monocultura, e a abundante produção e exportação do vinho, de novo, tornaram a Madeira famosa em todo o Mundo.
Na realidade, a economia do arquipélago conheceu um surto de grande expansão e até de certo fulgor nessa época; voltando o ancoradouro do Funchal a ser frequentado por muitas embarcações vindas de todos os quadrantes do planeta. Deste modo, entre 1787 a 1806, ou seja durante os últimos vinte anos da vida do poeta, o número médio de navios que entravam no porto do Funchal era de 350 por ano, ou seja, mais do que aqueles que no mesmo período demandavam a cidade do Porto.
Destacamos também as imensas plantações de vinhas malvasia, boal, sercial, verdelho, e negra mole, que com grande pujança, se estendiam desde os 600 metros de altitude na costa sul da ilha, onde os madeirenses fabricavam um vinho generoso de superior qualidade, empregado em abundantes e lucrativas exportações; mas que, diga-se de passagem, os nossos camponeses quase nunca o consumiam.
Salientamos ainda, que nesse tempo do esplendor vinhateiro, chegaram-se a atingir, anualmente, montantes produtivos superiores a 50.000 pipas de vinho; sendo também o período em que a Madeira exportava mais de 40.000 pipas anuais, sobretudo, como consequência dos principais mercados estarem encerrados por efeito das guerras europeias; o que determinava o recurso quase exclusivo ao «Madeira», nomeadamente por parte da Inglaterra e das colónias inglesas da América.
E como não podia deixar de ser, esse progresso da gentil Madeira - Ilha dos Amores para Luís de Camões - inspirou a Francisco Álvares de Nóbrega um bonito soneto, galhardamente, dedicado à sua flor do Oceano:

Do vasto Oceano flor, gentil Madeira,
Que murta viçosa o cimo enlaças,
Sóbria a teu seio amamentando as Graças,
Com o vítrio suco da imortal Parreira

Daquele, que em ti viu a luz primeira,
Se acaso é crível que inda apreço faças,
Entre o prazer das brincadeiras taças
Recolhe a minha produção rasteira.

É donativo escasso, eu bem conheço;
Mas o desejo que acompanha a oferenda,
Lhe avulta a estima, lhe engrandece o preço.

Deixa que a roda o meu Destino prenda;
Em cessando estes males, que padeço
Talvez então mais altos dons te renda.

Lembramos também, que naquela época, a Madeira não tinha, praticamente, relações comerciais com o Reino, onde o nosso poeta acabou os seus gloriosos dias, em virtude de por um lado, o Continente também se afirmar como grande produtor de vinho, e por outro lado, apresentar-se profundamente deficitário em cereais, que consistia precisamente o produto de que a ilha mais necessitava.
Referir ainda, que entre 1775 a 1783, ou seja no período da adolescência de Francisco Alvares de Nóbrega, surgiram algumas dificuldades na economia do arquipélago devido à Guerra da Independência da América, e ao Bloqueio Inglês às colónias, acontecimentos externos que durante um curto prazo determinaram uma significativa quebra nas exportações insulares, mas que depressa foram ultrapassados, com o retorno da paz.
Acrescentamos igualmente, que em consequência do pleno emprego e dos altos preços que os vinhos chegaram a alcançar, esse grande desenvolvimento que se verificou no ciclo de existência do nosso poeta, determinou melhorias no nível de vida de certos madeirenses, designadamente dum punhado de comerciantes, dalguns grandes proprietários de terras, e de meia dúzia de colonos que ainda trabalhavam superfícies com razoáveis dimensões.
Porém, nas esteira do historiador Alberto Vieira, também somos da opinião que o vinho Madeira foi sobretudo um vinho para inglês degustar e amealhar fortunas, e para o Ilhéu foi apenas um limitado recurso económico, e ao mesmo tempo um vexame pouco compensatório; como certamente constatou a aguçada sensibilidade humanista de Francisco Álvares de Nóbrega.
Resta lembrar, que condicionada pela estrutura económica que acabamos de descrever, o subconsciente colectivo e a superstrutura mental madeirense foi sendo dominada pelos temas ligados à exploração vinícola, ao mesmo tempo que, paulatinamente, se foram apagando as referências açucareiras. O próprio brasão da cidade do Funchal que no período áureo da produção e exportação do açúcar, tinha como armas cinco formas de açúcar dispostas em cruz e nos quatro cantos o escudo com cinco quinas ladeado por uma cana verde com folhas; nesta era do apogeu do vinho, viu precisamente essas folhas de cana serem substituídas por cachos de uva.
Do mesmo modo, acompanhando o fulgor vinhateiro, exprimiram-se nas Artes e na Arquitectura novos estilos e influências. Assim, foram construídas as típicas residências madeirenses do séc. XVIII com os seus óculos de pedra nas paredes, as torres avista navios, cimalhas nos beirais, cantarias de pedra vermelha, varandas decoradas com ferro forjado, o lagar do coxo no rés-do-chão, e os mirantes, balcões e casas de prazer nos jardins, que ainda hoje abundam nas ruas do centro histórico do Funchal, e de certo modo em Machico; os quais certamente influenciaram o sentido estético e o gosto refinado de Francisco Álvares de Nóbrega .
Ao mesmo tempo, um pouco por toda a Ilha, assistiu-se à vitória do barroco e da talha dourada sobre o gosto flamengo e o mudejarismo, de que escolhemos como exemplo a bela igreja jesuíta do Colégio, no Funchal.
Acresce que a classe dominante da Madeira copiou a vida cortesã dos numerosos ingleses que pontificavam na economia da ilha; e as suas quintas rodeadas de sumptuosos vinhedos e jardins, rivalizavam, por vezes, com os melhores exemplares das mansões britânicas.
Mas, nos últimos decénios do séc. XVIII, precisamente no período de vida do nosso poeta, o Neoclassicismo também começou a influir na arquitectura insular, como podemos verificar na Igreja Inglesa da Sagrada Trindade, e no palacete do cônsul inglês Henry Veitch, hoje sede do Instituto do Vinho da Madeira.
No campo da Literatura e da Poesia, Francisco Álvares de Nóbrega viveu no período final do Neoclassicismo, que foi um movimento literário que derivou do espírito critico do Iluminismo e do Racionalismo, que tinha como principal finalidade a restauração das formas, das técnicas, e das expressões clássicas da Renascença, que haviam vingado em Portugal e na Madeira do séc. XVI. Tratava-se, assim, duma corrente literária de ruptura frontal contra o barroquismo e os exageros do cultismo, e do conceptismo, preocupada com a restituição da sobriedade, e da prática de grande disciplina estética; tudo factores que podemos verificar e apreciar ao cotejar a obra poética do talentoso vate de Machico.
E tal como os escritores neoclássicos, também o nosso poeta procurou descrever a natureza com muita fidelidade, como é bem visível nalguns sonetos que já relatamos, e na seguinte Gloza que como mero exemplo, transcrevemos:

Natureza! Mãe fecunda
De tudo quanto respira,
Que prodígios não admira
Quem teus segredos profunda!
Do centro da terra funda
Tenra planta brota e cresce,
E tanto o ser agradece
Á causa donde proveio,
Que mostra trazer no seio
Uma alma, que reconhece. (…)

Este tributo expressivo
De amor e de gratidão,
Nos mostra que as plantas são
Dos Numes exemplar vivo;
Seu suco vegetativo,
Alma que as agita, e move,
Extrai porções da de Jove:
É sua mútua firmeza
Um dever, que a Natureza
Não altera, antes promove.

Cingindo frente com frente,
Unindo braços com braços,
Sem depender de outros laços,
Elas se amam mutuamente;
Propagam sua semente
Em gostosa liberdade,
Terno amor, doce amizade.
Vós que fazeis seu transporte,
Outorgai da mesma sorte
Este bem à Humanidade.

Porém, no Elucidário Madeirense, o padre Fernando Augusto da Silva e Carlos A. Menezes comentam que, Inocêncio Silva, falando do nosso poeta no «Dicionário Bibliográphico», explana que o vate de Machico, não seguiu escola determinada, porque dos seus versos, uns recordam a maneira de Bocage e outros a de Francisco Manuel. Acrescenta ainda que houve muito poucos poetas que o igualassem nos sonetos, e que a sua linguagem, posto que não abundante em demasia, é pura e correcta, e os versos são em geral fluentes e harmoniosos.
Quanto a nós, sem negar a nítida influência neoclássica que recheia toda a obra poética de Nóbrega, aditamos que tal como aconteceu com o Tomás António Gonzaga da Marília de Dirceu; e sobretudo com o seu contemporâneo e amigo Manuel Maria Barbosa du Bocage; o nosso poeta descreveu com grande realismo e sensibilidade as frementes emoções da doença e das masmorras, bem como os seus desesperos, infortúnios, e dores da alma, pelo que o podemos colocar, sem hesitação, entre os mais eminentes cultores do Pré-Romantismo português, como podemos apreender neste soneto de amor escrito na prisão:

Sadias virações da madrugada,
Que as folhas embalais deste arvoredo,
Entrando neste sítio inda mais cedo
Que a dúbia luz da aurora marchetada.

Agora que repousa a doce Amada
Em bençãos de jasmins seu corpo ledo,
Um pouco respirai mais em segredo,
Sádias virações da madrugada.

Respeitai de Marília o sono brando
Nos ramos destes álamos copados.
As subtis asas plácidas feixando.

Tende em morno silêncio os verdes prados,
Durma a causa do mal que estou passando
Enquanto dorme – dormem meus cuidados.

Acrescentamos mesmo, que uma das admiráveis zonas de inovação em relação aos modelos da sua época, quer de Bocage, quer do nosso Nóbrega, situa-se precisamente na exploração que ambos fizeram dos ambientes hórridos e tenebrosos, dentro da melhor tradição shakespereana, e no mais puro gosto pré-romântico.
Efectivamente, ambos legaram-nos os melhores depoimentos da literatura portuguesa e as mais vibrantes e comovedoras experiências da vida nos cárceres, particularmente os horrorosos enredos vividos nesses sepulcros dos viventes

Apenas, alguns exemplos:

Preso à rija cadeia, onde inocente
Suporto da calúnia o férreo açoite,
Sem achar outro arrimo, a que me acoite,
Bradava pela morte em pranto ardente. (…)

Quem me diz que entre os ferros da violência,
A cujo peso o meu valor quebranto,
Pode a dor sufocar, conter o pranto,
O que conserva ilesa a consciência;

Ou dos trabalhos tem pouca experiência,
Ou finge esforço inexpugnável, santo;
O delinquente em ferros geme tanto,
Como o herói da cândida inocência. (…)


Como está este dia tão soturno!
Pavoroso negrume o ar enlucta,
Naquele galho a regougar se escuta,
Crendo que é noite, o carpidor nocturno.(…)

O encrespado mar, de negro tinto,
Ostenta em sua túmida voragem
Querer o Orbe aniquilar faminto.

Sucedeu Bóreas torvo à branda aragem;
Da viva inquietação, que n´alma sinto
Ó dia de pavor, tu és a imagem!

Por último, este belo soneto, que Nóbrega dedicou a Camões:

Se me recordo, meu Camões divino,
De que em pobre hospital, sórdido, agreste,
O derradeiro adeus ao Mundo deste,
Leio em tua desgraça o meu destino.

O drago da doença, atroz, maligno,
Cospe em meu corpo tragadora peste;
Que meu fatal instante em fim se apreste,
Espero, como tu, em leito indigno.

Com tudo melhor sorte em ti conheço:
Tu do desprezo sofres só o insulto,
Eu entre ferros ao sepulcro desço,

Tu sem nota, eu infame me sepulto;
Porém menos, também, menos mereço,
Porque tu eras sábio, eu sou estulto.

Chegados aqui, é altura de recordar uma contradição ao fulgor económico do período histórico em apreço, com consequências que, certamente, preocuparam e alvoroçaram Francisco Álvares de Nóbrega, que não compreenderia, totalmente, os motivos de muitas dramas, que vitimavam, especialmente, os mais frágeis e desvalidos.
Na verdade, as explorações agrícolas e económicas madeirenses de então, tinham características de quase monocultura e praticamente estavam viradas em exclusivo para a exportação. Daí resultava que, quando por circunstâncias externas, nomeadamente tempestades, guerras internacionais, ou acção dos corsários, o tráfego de navios para a Madeira era afectado, tais ocorrências determinavam que o arquipélago deixasse de ser devidamente abastecido de cereais e doutros géneros alimentícios; desencadeando-se as tradicionais Crises de Subsistência e até pavorosas fomes, com todo o seu caudal de mortes, misérias e tormentos.
Por exemplo, em 1761, ou seja poucos anos antes do nascimento de Francisco Alvares de Nóbrega, os efeitos da Guerra dos Sete Anos afastaram a navegação do Funchal, provocando situações de grandes carências alimentares; que acarretavam intensos surtos emigratórios, sobretudo para o Brasil. Em 1767, a situação piorou, exacerbada por uma epidemia de sarampo que grassou na cidade e nos campos; e em 1777, já na infância do nosso Camões Pequeno, assistia-se ao triste espectáculo de ver as ruas cheias de gente famélica a procurar, desesperadamente, o pão que não havia.
Esta trágica conjuntura agravou-se ainda mais com a eclosão da Revolução Americana e da Guerra da Independência da América, que tornava impossível a previsão, com um mínimo de rigor, de quando arribariam ao porto do Funchal os navios abastecedores vindos da América do Norte. Para fazermos uma pequena ideia da real dimensão dessas crises, basta lembrar que Baltimore fornecia-nos trigo, milho e arroz; de Bóston recebíamos farinhas, biscoito, feijão, arroz e carne; de Charleston provinha biscoitos, salmão, arroz, feijão e carne; e da Filadélfia e Virgínia também adquiriríamos carne, farinha, e milho.
Para atenuar as fomes, e evitar mais mortes, em 6 de Dezembro de 1777, a Câmara Municipal do Funchal pedia, encarecidamente, que pela Junta do Bem Comum fossem enviados navios com trigo para a Madeira; e em 1789, quando Francisco Alvares de Nóbrega já trabalhava na cidade, os vereadores e procuradores dos mesteres do Funchal, seguramente contando com a solidariedade e o apoio do jovem poeta de Machico, reivindicavam com veemência, em nome do povo, que fosse autorizado importarmos, directamente, trigo e milho dos Açores, cuja aquisição era privilégio exclusivo da Coroa.
É de realçar que em todas estas reivindicações e manifestações, os procuradores dos mesteres sempre foram os mais activos, pois eram precisamente as classes populares que suportavam quase todo o peso das crises de subsistência, situação que, certamente, feriu a aguçada sensibilidade humanista de Francisco Álvares de Nóbrega.
Aconteceu até, que em 1798, ainda no ciclo da existência do grande poeta de Machico, o governador Diogo Pereira Forjaz compeliu, violentamente, o comandante de uma galera estrangeira, vinda de Safin e que estava ancorada no porto do Funchal, a descarregar toda a carga de cereais que transportava para outro destino, invocando a falta de trigo que havia na Ilha para sustento dos seus habitantes que morriam de fome.
No século XX nada mudou. Em 1805, já no fim da vida de Francisco Alvares de Nóbrega, novo surto de fomes provocou lutas, arruaças e manifestações, reivindicando que o trigo dos Açores fosse importado sem entraves pelo nosso arquipélago; tendo sido tão intensa a reacção popular contra o autismo do Poder Central, que determinou a ordenação régia de 17 de Janeiro de 1806, onde, finalmente, constava que dada a esterilidade que se achava a Ilha pela falta de grão e farinhas, ordena-se que doravante nas Ilhas dos Açores não se compre grão de qualidade alguma, para ser remetido à Corte de Sua Real Fazenda, a fim de que o existente se transporte para a Madeira.

Porque já nos alongamos, resta-nos debruçar, embora de forma muito sucinta, á volta da superstrutura relativa à História das ideias e das correntes de pensamento que se esgrimiam durante o curto tempo da vida do nosso poeta.
Assim, por um lado pontificavam os defensores do servilismo, dos Morgadios e Capelas, da obediência cega, do dogmatismo e de todas as instituições da Velha Ordem, robustecidos com a política conservadora de Dª Maria 1ª e do seu governo, que após o afastamento do Marquez de Pombal recorreu às ameaças, à prisão, e à tortura, com a finalidade de impedir o progresso do pensamento liberal, que um pouco por toda a Europa gerou as condições para a eclosão da Revolução Francesa.
Do outro lado, vítimas da opressão e relegados para a clandestinidade, pulsavam os paladinos da mudança, da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, que foram ganhando cada vez mais adeptos, sobretudo nas camadas intelectuais; sendo até certo que a Madeira foi das primeiras terras portuguesas onde se organizaram as célebres lojas maçónicas, condenadas em 1737, por bula papal; apesar de apenas difundirem os ideais filantrópicos, a fraternidade universal, e o auto-aperfeiçoamento moral e intelectual.
De facto, logo em 1770, ainda o nosso escritor não era nascido, o Governador do arquipélago mandou prender Aires Ornelas Frasão, Francisco Alincourt, e Bartolomeu Andrieux, acusados de serem perigosos pedreiros–livres, que ponham em perigo a ordem, a religião, as instituições, e a moral tradicional.
E em 1792, pouco antes de Francisco Álvares de Nóbrega entrar no Seminário, foi desencadeada pelo déspota Bispo D. José da Costa Torres, uma cruel perseguição contra os maçons e outros cidadãos que não se conformavam com o dogmatismo e a opressão. Para tanto o Prelado mandou publicar um raivoso edital convocando os cidadãos a denunciar à Inquisição todos aqueles que soubessem pertencer ao que ele chamava a maldita seita, que tinha pacto com Satanás e era excomungada.
Num importante estudo sobre estes factos, publicado em 1989, nas Actas do I Colóquio Internacional da História da Madeira com o título, A Madeira nos Arquivos da Inquirição, a investigadora Maria do Carmo Jardim Dias Farinha refere que se verificou um conjunto de denúncias para o Tribunal do Santo Ofício, tal como aconteceu em 1591 contra os cristãos-novos. Desta vez o alvo foi a Sociedade dos Pedreiros Livres; que organizava muitos membros da nobreza, grandes proprietários, intelectuais, e até padres católicos, chegando alguns a ser presos e outros foram exilados.
Comentando estes factos, a historiadora Anita Novinsky, com quem estamos inteiramente de acordo, referia que a violência punitiva e castradora da Inquisição era mais uma prova que esse Tribunal tinha por fim averiguar o grau de ortodoxia dos moradores, e testar a resistência que estes apresentarem em aceitar a doutrina, a moral e a explicação do Mundo dadas pelo Poder, representado por um lado pela Igreja e do outro pelo Estado.
E foi precisamente porque não se conformou com um Estado absolutista e tirano; e porque também afrontou a doutrina retrógrada duma Igreja caduca e prepotente, que o grande poeta Francisco Álvares de Nóbrega sofreu os tormentos do cárcere, e acabou tragicamente com os seus dias, muito infeliz e deprimido.
Podemos assim classificar Francisco Alvares de Nóbrega como um dos heróis que foram sacrificados na luta pela Liberdade, pela Justiça e pela profunda transformação da Humanidade, em favor de mais igualdade e fraternidade para todos os povos.

A finalizar, lembramos que tem sido voz corrente, que os tenebrosos esbirros da Inquisição, quando depararam com o cadáver do escritor, vandalizaram e destruíram os seus escritos, e até uma nova colecção de poesias que estava pronta para ser publicada; facto que torna imperativo que continuem a ser promovidas cuidadosas investigações e buscas para tentar descobrir os trabalhos do nosso poeta que, porventura, ainda estejam dispersos e desconhecidos.
Por outro lado, continuam a faltar investigações, estudos, e ensaios sobre a vida e a obra deste grande poeta madeirense, pelo que terminamos este artigo com um apelo aos nossos eruditos, sobretudo aos organismos regionais de cultura, e à Universidade da Madeira, propondo que sejam motivados e incentivados mais estudos especializados para a procura, investigação crítica, e a reconstituição judiciosa dos escritos de Francisco Álvares de Nóbrega, e ainda para que prossigam investigações tendentes a colmatar as lacunas que ainda persistem em volta da biografia e das influências históricas, literárias e culturais na obra deste grande e nobre poeta; que muito honra Machico e a Madeira.



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