terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
A Madeira na Vida de Norton de Matos
José Maria Mendes Norton de Matos, nasceu em 23 de Março de 1867, na Vila de Ponte de Lima - Minho, tendo aí falecido a 3 de Janeiro de 1955. Matriculou-se no Curso de Matemática da Universidade de Coimbra, em 1885, tendo ingressado depois na Escola do Exército no ano de 1888; onde três anos depois acabou o curso, e foi promovido a oficial do quadro permanente.
Foi um ilustre escritor, um distinto militar, um brilhante quadro colonial e um corajoso político, agraciado em Portugal com as Grã-Cruzes da Torre e Espada; de Sant’Iago; e de Avis; e ainda com a comenda da Ordem de Cristo. Na Inglaterra, seria distinguido com a Grã-Cruz de S. Miguel e S. Jorge.
Como escritor, além de ter colaborado em diversos jornais, nomeadamente no Primeiro de Janeiro do Porto, publicou A Província de Angola (1916), Memórias e Trabalhos da Minha Vida (1914-1916), Ensaio sobre Paiva Couceiro (1948), e A Nação Una (1953).
Como militar, encetou a sua carreira no posto de alferes do Regimento de Cavalaria 4, e poucos anos depois, concluiu os tirocínios para o Corpo do Estado-Maior; tendo sido nomeado chefe do Estado-Maior da 5ª Divisão Militar, após a implantação da República. No período da Primeira Guerra Mundial, já como Ministro da Guerra, foi o principal responsável pela organização do Corpo Expedicionário Português, tendo contribuído, decisivamente, para em apenas nove meses, transformar um exército bisonho e mal organizado, numa razoável unidade operacional; façanha que ficou conhecida como o milagre de Tancos.
Com o Governo da Ditadura implantada por Sidónio Pais, Norton de Matos foi demitido da pasta da Guerra, e obrigado a exilar-se em Londres, onde apenas por grande patriotismo aceitou um comando subalterno na Flandres, no mesmo corpo expedicionário que tão brilhantemente havia criado e chefiado. Finda a Guerra, foi um dos mais destacados e influentes membros da delegação portuguesa à Conferência de Paz.
Como quadro colonial, pouco após o odioso Ultimato inglês, e influenciado por Mouzinho de Albuquerque a quem muito prezava e admirava, Norton de Matos iniciou a sua famosa carreira servindo durante alguns anos no Estado da Índia, onde se salientou como chefe dos Serviços de Agrimensura; tendo até dirigido e organizado todo o cadastro dos terrenos daquela colónia.
Em 17 de Julho de 1912, foi nomeado Governador – Geral de Angola, tendo sido afastado dessa incumbência pelo gabinete de Pimenta de Castro, que depressa acabou também por cair. Poucos meses depois, o novo Governo da República indicou-o para o cargo de Ministro das Colónias, e mais tarde para o de Ministro da Guerra. Até que em 1921, voltou a Angola para desempenhar o importante posto de Alto-Comissário da República, tendo aí desenvolvido uma obra tão gigantesca, que ficou conhecido e apelidado como o Cecil Rhodes português, ou seja, o homem que sonhou o Império.
Na verdade, Norton de Matos foi o maior obreiro da nossa acção colonial, ordenando a construção de dezenas de milhar de kilómetros de estradas e caminhos-de-ferro, o apetrechamento e a reconstrução de vários portos, o lançamento de linhas telegráficas, a expansão da língua portuguesa, o incremento do povoamento, a organização administrativa e civil de Angola, o combate à doença do sono, e a realização do 1º Congresso de Medicina Tropical, em que participaram os mais célebres cientistas mundiais.
De toda essa vasta obra colonial, de que apenas focamos alguns exemplos, queremos destacar o seu constante empenhamento no sentido de mudar a situação das populações indígenas, transformando a conjuntura de quase escravatura, que então imperava, num estatuto de cultivadores livres e de pequenos proprietários. Em suma e como refere o historiador Rui D’Abreu Torres, a política de Norton de Matos «consistiu, fundamentalmente, em colocar o território angolano – onde foi encontrar escravatura encoberta, camuflada e sofismada – no caminho dum desenvolvimento económico, com base na agricultura, e numa aculturação assente na dignidade humana relativamente às condições da propriedade, do trabalho e da saúde».
Tamanha visão e humanismo despertaram a reacção dos medíocres e dos negreiros exploradores dos povos coloniais, que acabaram por conseguir que, em Junho de 1924, o general fosse afastado de Angola, embora para ocupar o importante cargo de embaixador de Portugal em Londres. Na Inglaterra, Norton de Matos depressa ganhou prestígio e consideração, tendo registado com muito brio:- que no meio de uma civilização como outra nunca houve, fui cercado de estima e respeito na minha qualidade de representante de um País, que soubera colocar-se no lugar que o seu passado e a sua missão histórica lhe marcaram.
E através da sua calorosa acção em defesa da amizade luso-britânica, foram tão distintos e valorosos os benefícios alcançados pelos dois povos, que determinou que Jorge V lhe concedesse o título de sir, e o agraciasse com a Grã-Cruz de S. Miguel e S. Jorge.
Como politico, Norton de Matos sempre revelou uma coesa orientação progressista e democrática, honrando significativamente o nome herdado de seu pai Tomás Mendes Norton, activo liberal e descendente duma geração de ilustres pedreiros livres, portugueses e ingleses.
Em consequência dessa tenacidade desenvolvida na defesa da liberdade, da igualdade e da fraternidade, a ditadura de sinal fascista surgida após o movimento de 28 de Maio de 1926 afastou-o dos cargos políticos e administrativos que desempenhava; marginalizando este grande vulto da história nacional, que apenas pôde dedicar-se à carreira de professor catedrático de Geodesia e Topografia, no Instituto Superior Técnico.
Em Junho de 1948, milhares de anti-fascistas, na maioria provenientes do Movimento de Unidade Democrática (MUD), patrocinaram a candidatura do General à Presidência da Republica, tarefa que foi aceite por Norton de Matos, que apesar da sua já vetusta idade, alimentou uma corajosa e dinâmica campanha eleitoral, na qual reivindicou a restauração do regime democrático, e denunciou os crimes da PIDE, a repressão, a desenfreada exploração, o obscurantismo, os males da censura, e a falta das liberdades fundamentais.
Em 1896, o general Lencastre de Menezes, proveniente de famílias da nobreza, e frequentador dos salões da alta sociedade lisboeta, foi encarregado de chefiar uma comissão de inspecção militar no arquipélago da Madeira. O então jovem oficial do estado-maior Norton de Matos, tinha sido nomeado seu ajudante de campo, e nessa qualidade, acompanhou-o naquela missão a realizar na ilha. Em carta que escreveu ao pai, o oficial informava que embarcaria no vapor Zaire para o Funchal, e comentava que embora a maior responsabilidade da legação pertencesse ao general, do modo como nos desempenharmos dela resultará bem ou mal para mim.
Noutra missiva, já escrita na Madeira, mostrava-se despreocupado e muito contente, pois além de se divertir bastante, tinha feito algum sucesso nos salões da terra e galhardamente comentava: Anteontem tivemos um jantar em forma, onde estavam oficiais dum navio de guerra francês que aqui está. Meti tudo a um canto.
De notar que embora o militar tivesse apreciado as belas paisagens madeirenses, e conhecido os pitorescos costumes do povo ilhéu, estes aspectos pouco ou nada foram referidos nas suas cartas. Apenas escreveu sobre o clima, classificando-o de bom, apesar de um pouco húmido e de revelar a proximidade de África. O seu biógrafo José Norton, explica que dir-se-ia que «estava deslumbrado com a visão de uma sociedade que em Lisboa nunca tivera a oportunidade de frequentar e que aí se lhe abria, por se estar num meio pequeno e ele acompanhar um oficial superior, oriundo de família afidalgada».
Contudo, esses encantos e mordomias palacianas não ofuscaram o sentido crítico de Norton de Matos, pois era bem patente - como julgamos ter provado no nosso livro História da Madeira- Uma Visão Actual - que tal como aconteceu em setecentos; durante grande parte do séc. XIX e nos primeiros decénios do séc. XX, o arquipélago sofreu uma crise económica, social e até moral, tão profunda e devastadora, que não temos dúvida em classificar os séculos XVII e XIX como os períodos mais negros e mais dramáticos da história insular. Daí que o militar, numa missiva dirigida a sua mãe, comentasse:- a primeira sociedade daqui, no meio da qual tenho vivido, é muito distinta, muito amável, e recebe admiravelmente em suas casas, postas com um gosto raro e fino. Sente-se, porém, na convivência, um não sei quê de falso e artificial que nos põe de sobreaviso: e por mais que faça para desviar esta ideia, sinto ao falar com eles a mesma impressão - modificada, transformada é verdade – que me causam os cicerones, os vendedores e os lojistas na sua faina de atrair o estrangeiro. Explorar atraindo e cativando, parece-nos ser a frase que define esta gente, delicada de mais, amável de mais – desde o portador de rede ao mais importante tipo da primeira sociedade daqui.
Observando e cavando mais fundo, facilmente a lupa de Norton de Matos desvendou as reais dificuldades dos insulares. Assim, numa carta endereçada à mãe referia:- não há fortunas consideráveis na Madeira, a não ser na mão dos ingleses, e através do luxo das recepções, transluz a penúria da vida de todos os dias, da vida íntima. Acrescentava ainda, que o sector da população que constitui a primeira sociedade é um pouco mesclado – há os nomes, os funcionários mais graduados, e um ou outro membro do alto comércio. As raparigas, muito agradáveis, fazem ao rapaz solteiro que aqui cai do Continente, um cerco em regra, dirigido superiormente pelas mães e« tuti quanti».
E muito seguro, orgulhoso e até algo presumido, terminava essa carta, afirmando que com as raparigas madeirenses, como são pobres e sem a mínima parcela do que moralmente constitui o encanto da mulher – não há perigo. Quanto ao resto, a vida não é má. Isto é realmente pitoresco, a vida «des gens du monde» é realmente curiosa; não serve, porém, para sempre.
Todavia, pouco tempo depois, em nova carta dirigida à mãe, adivinha-se que Norton de Matos ia modificando, significativamente, as suas opiniões. Certo que ainda referia que o nível intelectual dos homens era muito baixo; mas quanto às mulheres, nomeadamente da primeira sociedade, são instruídas e educadas. A convivência amiudada com oficiais de marinha de todos os países, recebidos aqui com mil soirées e festas, e que com elas conversam quase exclusivamente, dá-lhes um feitio que os homens não têm; falam todas o inglês e o francês como o português, e recebem e apresentam-se como o que há de melhor em Lisboa. – à parte umas pequenas liberdades que a nossa rigorista e sã educação do Continente não admitiria. Acaba essa missiva, confidenciando:- tem sido muito comentada e notada a minha assiduidade junto da menina mais distinta e bonita do Funchal, e pertencente a uma das famílias mais selectas desta ilha - dela terei, talvez, de lhe falar mais tarde...
E o certo é que pouco depois, Cupido completara a sua obra, atingindo, fortemente, o coração de Norton de Matos, que não conseguiu esconjurar o perigo que, apressadamente, não tinha reconhecido às madeirenses. Passadas curtas semanas, noticia à mãe, que pediu em casamento a Ex.ª Sr.ª D.ª Maria da Câmara de Vasconcelos e Couto, filha de Luís de Vasconcelos e Couto (já falecido) e de D.ª Ifigénia da Câmara de Vasconcelos. Queria tê-la junto de mim, minha querida Mamã, para a abraçar e beijar e dizer-lhe que nunca na minha vida me senti tão feliz. A minha noiva tem 21 anos em Março, e pertence a uma das famílias mais distintas da ilha da Madeira. O que ela é como gentileza, esmero de educação, finura e distinção de sentimentos, escusado será dizer-lho, porque a Mamã bem sabe qual era o meu modo de pensar a respeito das qualidades a exigir na mulher que eu escolhesse para minha.
Vivendo uma grande paixão, o militar encontrava todas as qualidades e encantos na noiva. Referia que ela era aparentada com as melhores e mais influentes famílias da Madeira e até de Lisboa, sobrinha do dirigente do partido regenerador – Barão do Jardim do Mar; prima do Governador Civil João Ribeiro da Cunha; e sobrinha do Barão de S. Pedro - político muito considerado na capital. Acrescentava que não é rica, mas também não era pobre, e teria dado o passo que dei, mesmo que esses factos não existissem, (...) pois cada dia que passa me revela mais na minha noiva a bondade que possui e a dedicação de que é capaz; e como a felicidade do casamento depende principalmente dos mútuos sentimentos de bondade e dedicação, tenho a certeza que hei-de ser muito feliz.
Após ter retornado a Lisboa, já noivo da jovem madeirense, Norton de Matos continuava convicto que os pais estariam contentes e satisfeitos por ter decidido casar com uma senhora com aquele perfil, pois eles até já haviam tentado arranjar-lhe uma noiva minhota, de quem com alguma dificuldade conseguira escapar. Tanto que noutra carta, confiadamente, referia à mãe:- espero que serei muito feliz com a resolução que tomei; pena é que há mais tempo eu não tivesse pensado em casar. O que tem sido a minha vida até hoje? – Inútil para os outros e para mim. Tece depois considerações sobre o quotidiano de solteiro, as ociosidades, as aventuras, os perigos e a falta de motivação para lutar pela construção dum futuro prestigiante. E afirma:- hei-de pôr sempre acima de tudo a felicidade da mulher que confiadamente me quer para seu marido. Caso com 30 anos e com muita experiência do mundo: hei-de fazer feliz a minha mulher. Que ela seja o que a minha mãe tem sido é o que eu desejo.
E esquecendo as preocupações financeiras da família, o militar entregou-se, quase exclusivamente, à concretização do projecto de casar com a madeirense que o deixou cativo. Confidenciava à mãe:- encontrei aquela senhora, vi nela a realização dos meus sonhos, o penhor da minha felicidade, o melhorar da minha vida futura: devia abandonar tudo isso? (...) Eu preciso casar-me por todas as razões...
Todavia, apesar do grande apego e investimento sentimental naquele casamento, o certo é que, perversamente, conjugou-se a falta de maturidade da jovem noiva, com a distância e o decurso do tempo, acabando por determinar que Maria de Vasconcelos esmorecesse os seus sentimentos, e acabasse por romper com o noivado.
Aquele inesperado golpe atingiu profundamente Norton de Matos, que em missiva que endereçou ao pai, lamentava: - depois de 23 cartas escritas quase dia-a-dia, enviadas por todos os vapores e cheias de todas as palavras e frases que o uso consagrou para significar amor e estima, recebi o seguinte daquela que foi minha noiva: – Ex.º Senhor. Desde há alguns meses dá-se em mim uma luta que dificilmente poderei descrever, e achando melhor evitar frases inúteis, venho somente dizer-lhe que pensando melhor no passo mais sério da minha vida e analisando minuciosamente os meus mais íntimos sentimentos, vejo que não me sinto com coragem para contrair o casamento ajustado entre nós, pois não lhe posso dispensar o sentimento que deveria torná-lo feliz. (...) Creia que lhe desejo do coração todas as felicidades que se possam ambicionar para um bom amigo e espero que me devolverá as minhas cartas, assim como os meus retratos.
O militar refere ainda que após receber essa crua notícia do rompimento do noivado, veio a sua casa o oficial da marinha Francisco de Vasconcelos, seu amigo e irmão da noiva, perfeitamente sucumbido e mostrou-me a carta que nesse instante tinha recebido da mãe, e em que ela dando-lhe parte da resolução da filha, dizia que o único motivo que ela alegava para desmanchar o casamento, era o não sentir por mim verdadeiro afecto. Nessa carta eram-me feitos os maiores elogios... Este proceder do irmão quebrou por completo o impulso de qualquer passo, que o meu génio me levaria, porventura a dar. (...) Ontem mesmo enviei para a Madeira, sem uma única palavra que as acompanhasse, as cartas e retratos que tinha em meu poder.
Termina a carta pedindo para o pai não se apoquentar, e para que continue a ter confiança na dignidade, na energia de carácter, e no orgulho do seu filho que pede que o abençoe.
A título de curiosidade, informamos que depois duma série de averiguações, soubemos por familiares da noiva, que poucos anos depois de romper o noivado, Dª Maria de Vasconcelos Couto Cardoso casou com o oficial do exército alemão Ricardo Lutz, o qual, por ironia do destino, faleceu na Iª Grande Guerra Mundial, em combate contra as tropas aliadas, em cujas fileiras Norton de Matos foi um dos mais brilhantes oficiais; facto que, certamente, ofertaria a Camilo Castelo Branco, matéria para compor mais uma das suas famosas novelas…
Fácil é calcularmos quão profundamente aquele inesperado fim do projecto de casamento feriu os sentimentos e o amor-próprio do militar. O seu biógrafo José Norton escreveu que «nunca mais, na sua longa vida, tornou a falar neste episódio, e quem sabe se alguma vez voltou a sentir, tão intensos, os tormentos e anelos da paixão de amor».
Quanto a nós, não duvidamos que a ferida aberta pela jovem madeirense no brio e na auto-estima de Norton de Matos, foi determinante na construção dum grandioso futuro. Na verdade, em vez de cair num estado depressivo, a elevada formação do militar, a sua tenacidade e o seu forte carácter, sublimaram tamanho desgosto; levando-o a concentrar todas as suas energias ao serviço do País e do seu povo, e a construir, afincadamente, a obra notável que o projectou até ao estatuto duma das maiores e mais assinaladas figuras portuguesas do seu tempo.
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