quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
A Madeira na Obra de Júlio Dinis
Júlio Dinis – pseudónimo literário de Joaquim Guilherme Gomes Coelho – nasceu no Porto em 1839, e aí faleceu a 12 de Setembro de 1871; sendo filho do cirurgião José Joaquim Gomes Coelho e de D.ª Ana Constança Potter.
Estudou medicina na Cidade Invicta, tendo chegado a Professor da Escola Médico-Cirúrgica dessa urbe. Todavia, minado pela tuberculose, cedo interrompeu a carreira científica e pedagógica, dedicando-se a escrever Contos, Romances, Poesia e até Teatro.
Relacionado com a colónia inglesa do Porto, de quem descendia por parte da família da mãe, desde cedo conheceu, estudou e aprofundou a novelística de Charles Dickens e as obras literárias doutros escritores britânicos, nomeadamente, de Goldsmith, Fielding, e Jane Austen.
Esse gosto pela literatura inglesa, e o facto de ter vivido no período da ascensão e afirmação do liberalismo, explicam, em grande parte, que além de burguês assumido, Júlio Dinis seja considerado o escritor português que fundou o romance moderno no nosso país. Na realidade, Alexandre Herculano não hesitou em classificar As Pupilas do Senhor Reitor «como o primeiro romance português do século XIX»; e no mesmo sentido, António José Saraiva escreveu que Uma Família Inglesa foi, «em data, o primeiro romance moderno português bem realizado».
Apesar do escritor ter falecido com apenas trinta e dois anos de idade, deixou uma vasta obra literária, tendo publicado em vida As Pupilas do Senhor Reitor (1866), Uma Família Inglesa (1868), A Morgadinha dos Canaviais (1868) e Serões na Província (1870). Depois da sua morte foram ainda editados Os Fidalgos da Casa Mourisca (1872), Poesias (1873), Inéditos e Esparsos (1910), Teatro Inédito (1946) e Cartas e Esboços Literários (1946).
Embora muitos autores classifiquem Júlio Dinis como um escritor de transição entre o Romantismo e o Realismo, somos de parecer que o conjunto da sua obra evidencia predominantes características realistas. Realista pelo grande rigor com que descreve os factos, os costumes, as crenças e os ambientes exteriores da cidade e do campo. Realista pela clara vocação para caracterizar psicologicamente os sentimentos, as paixões, os estados de alma e o subconsciente das suas personagens. Realista também pela naturalidade e simplicidade dos seus diálogos, despidos de declamações líricas, de barroquismos ou doutras figuras de estilo. Realista pela coerência da sua moral burguesa, humanitária e filantrópica; e realista ainda pela especial atenção que dedicou à crítica de grande parte do clero, bem como à denúncia da corrupção e da cupidez praticada pela maioria dos políticos.
Aliás, o próprio escritor refere nos Inéditos e Esparsos que a verdade lhe parece ser o atributo essencial do romance bem compreendido. Verdade das descrições, verdade dos caracteres, e verdade na evolução das paixões e da intriga, o que bem revela a sua inclinação para o modelo realista. Porém, é certo que Júlio Dinis levou ao extremo o optimismo e a delicadeza moral das suas personagens, amputando da sua obra os grandes vícios, os cenários eróticos, as vilezas e as perversões dos pecadores. Simplesmente, isso apenas ocorreu porque esses temas não lhe agradavam, e nunca por imperativos estilísticos ou literários. Daí que em 1869, Júlio Dinis referisse com grande convincção:- nos meus romances não há indivíduos caracterizadamente maus. Não tenho pintado crimes, quanto muito vícios. Tanto eu me deleito em conceber um carácter que simpatize, em o encarar por todas as suas faces para as pôr em evidência aos olhos dos leitores, em vê-lo em acção e harmonizar o diálogo com esse carácter; quanto me repugna e enfastia demorar o pensamento em um tipo antipático, em um carácter revoltante, em uma dessas criaturas em cuja contemplação a alma se enoja ou indigna.
Todavia, apesar desse predominante gosto pelo realismo, restam na obra de Júlio Dinis certas pitadas de romantismo, nomeadamente quando o escritor se intromete na acção dos romances para manifestar as suas opiniões pessoais, comparando-se com as personagens, e ainda quando em ligação com os sentimentos utiliza uma excessiva coloração bucólica da natureza; ou até mesmo quando exagera e se excede numa visão cor-de-rosa do mundo, ou numa fácil e enganadora felicidade.
A tuberculose pulmonar que já tirara a vida da mãe e de dois irmãos do escritor, muito cedo também começou a destruir-lhe o débil organismo. Em procura de melhoras deslocou-se à Madeira desde Março a Maio de 1869, altura em que ganhou alento para começar a escrever Os Fidalgos da Casa Mourisca. Voltou ao Porto, mas sentindo-se pior, tornou a embarcar para a Ilha, onde viveu de Outubro de 1869 até Maio de 1870. Como a tuberculose não cedesse, refugiou-se novamente no Funchal, em Outubro de 1870, donde em Fevereiro de 1871, informou que tinha estado muito doente; e desafogava:- uma verdadeira tempestade de nervos caiu no meu organismo e mo pôs em completa anarquia. Emagreci, quase me desconheço quando, ao pentear, me vejo.
Cada vez mais desesperado, noutra carta escrita na Madeira em Abril de 1871, manifestou a resolução de aguardar tranquilamente o Outono nalgum buraco dos subúrbios do Porto. E seja o que Deus quiser...
Nos períodos em que viveu no arquipélago madeirense, Júlio Dinis observou e relatou com alguma minúcia as paisagens, os ambientes e os costumes ilhéus. Numa carta literária escrita no Funchal, em Março de 1870, começa por referir que partiu para a Madeira com a alma oprimida, em virtude de estar cada vez mais debilitado pela terrível tuberculose, pelo que não serão alegres e risonhas as tintas com que pintará a ilha. Acrescenta ainda que as viagens, esse sonho doirado que tanto seduz a imaginação da mocidade, ansiosa como ave prisioneira, por alargar horizontes, transformam-se em amarga proscrição, sempre que as empreendermos forçados por uma triste necessidade, e partimos levando o espírito assombrado por um pressentimento doloroso. O próprio mar, esse imenso foco de melancolia, acaba por escurecer-nos o pensamento, e apesar da sua grandiosidade, o oceano é um desconsolado companheiro para a alma naquelas disposições.
Todavia, quando ao amanhecer de um desses dias melancólicos e desoladores, se avista além, muito além do horizonte uma sombra mal distinta, saúda-se essa sombra como uma promessa de redenção. È a Madeira que se ergue e aclara e avulta e se contorneia e se colora com as tintas naturais, revelando-se, enfim, tal qual é, entre o azul do mar e o azul do céu. Então a melancolia dissipa-se e o espírito engolfa-se no regaço de verduras da formosa ilha, que crescia para nós a receber-nos, abrindo o seio benéfico e maternal aos desconfortados que nela só depositavam as suas derradeiras esperanças.
Pouco depois, o escritor já descortina claramente a terra, e quando o vapor dobra a ponta de São Lourenço, transpondo o amplo pórtico que ela forma com o grupo das penhascosas Desertas, exclama entusiasmado:- sente-se uma súbita mudança de clima, como se de repente se tivessem vencido muitos graus de latitude. Afagam-nos a face a brisa tépida e perfumada da ilha, aspiramos com prazer o hálito acalentador e salutífero desta fada marítima; achávamo-nos sob o seu abençoado encantamento, reconhecíamos enfim a Madeira.
A costa sul da ilha ia-lhe passando em revista, com as suas rochas escarpadas, as suas ribeiras profundas, a sua vegetação vigorosa, as suas formidáveis quebradas, os altos picos onde poisam as nuvens, os vales fertilíssimos e as povoações graciosas. Enfeitiçado, Júlio Dinis descreve a mágica sensação de dobrar a ponta do Garajau e contemplar as casas e as quintas do Funchal iluminadas por um esplêndido sol de Outono, que doirava as extensas plantações de cana. (...) A magia do espectáculo emudecera-nos. De um lado o mar, do outro as serras, e entre estas duas grandezas majestosas, a cidade sorrindo como a criança adormecida entre os pais, que a defendem e acalentam.
Ao desembarcar, o encanto quebrou-se um pouco, pois o escritor sentiu a falta dos areais alvejantes das praias continentais, em cujas penhas se formam aquários naturais, onde o sol se espreguiça e tudo ilumina, pelo que comenta, constrangido:- afecta-nos tristemente o aspecto desta praia negra formada de calhaus roliços, cor de lousa, sem uma dessas pequenas maravilhas naturais que são o principal atractivo da beira-mar. Esta pedra escura parece conservar ainda evidentes vestígios do cataclismo vulcânico que a arremessou à superfície das águas, e comprime o coração.
A cidade também inspirou a Júlio Dinis uma sensação de melancolia. Por isso mesmo que é generosa consoladora de tantos aflitos, por isso mesmo que acolhe no seio maternal os que sofrem e que de toda a parte do mundo correm a abrigar-se no seu calor salutar. O Funchal é a alegria da caridade, onde sentimos uma serena comoção. Ó Funchal! Que tristes dramas se têm passado à luz do teu sol benéfico! Que de lágrimas ardentes caídas no teu solo sequioso, que se apressa a escondê-las discreto!
Deprimido pela doença, o romancista refere que o carácter triste da cidade avulta aos primeiros passos no interior dela. O viajante cruza-se a cada momento com certas figuras pálidas, emaciadas, pensativas, marchando lentamente, ou transportadas em redes, encontra-as nos assentos dos passeios em ociosa meditação, ou fitando melancolicamente as ondas que se sucedem na praia. São ingleses cadavéricos, alemães diáfanos, portugueses descarnados, brasileiros, norte-americanos, russos. São velhos, adultos, crianças, vaporosas belezas femininas de toda a parte do mundo; todos a convencer-nos que estamos na «citta dolente», onde à entrada revestem-se de esperança os próprios condenados.
Numa carta escrita no Funchal, em 5 de Abril de 1869, para o seu primo José Joaquim Pinto Coelho, Júlio Dinis anota que ficou muito impressionado e constrangido, quando viu passar nas ruas funchalenses o Francisco Luís Gomes. Imagina tu um esqueleto, no rigor da palavra, alto, esquio, as pernas a vergarem-se-lhe sob o peso do corpo, a roupa a flutuar-lhe, a cor de cobre própria dos índios, os dentes descarnados e salientes. Faz medo, coitado! Ninguém dirá que está ali um homem de inteligência.
Afim de aliviar a neurastenia e a depressão, o escritor reconhece que era aconselhável subir às montanhas e passear pelo campo, mas para tanto sentia algumas dificuldades. Como tal, numa missiva endereçada a Custódio Passos, em 5 de Maio de 1869, refere que embora na Madeira a natureza seja soberba e repousante, não era fácil um doente deslocar-se para fora da cidade. Passeios a pé são impraticáveis graças às pavorosas subidas que por toda a parte se encontram. A rede não é tão cómoda como parece; e os carros sem rodas não podem vencer todos os caminhos. Depois um homem habitua-se como aí no Porto, a dar todos os dias a mesma volta e acabou-se...
Mas, apesar de continuar muito deprimido, na referida carta literária de Março de 1869, Júlio Dinis elucida que toda a tristeza e melancolia são compensadas pela grande simpatia que os doentes pulmonares inspiram aos madeirenses, simpatia tão forte que se sente poder substituir os doces afectos da família. E afirma: - Pessoas que nunca vos falaram, que não conheceis, seguem passo a passo, com sincero interesse, os progressos das vossas melhoras ou as alternativas do vosso padecimento. (...) Rara é a família que, levada por generosa curiosidade, se não informe com o médico que a visita ou com os proprietários dos hotéis, do estado dos estrangeiros doentes. Uma cura operada é um triunfo e todos a conservam na tradição gloriosa, com muito orgulho, e como se tratasse do principal brasão da terra.
Além de simpáticos, o escritor refere que os insulares são muito amáveis, ao ponto de ter bastado que, um amigo o tivesse recomendado a um madeirense, para que, de vez em quando aparecesse em casa um ou outro indivíduo oferecendo os seus serviços. As senhoras, além de formosas, condescendem muitas vez em animar a alma desolada dos solitários enfermos com o raio vivificador dos seus olhares magnéticos. Amoráveis, algumas acalentam esses amores que elas bem sabem sem futuro, e iluminam os últimos dias de uma triste existência com a doce luz do mais casto e imaculado afecto. (...) Anjos adoráveis, às vezes sob a influência do vosso amor voltam as cores às faces desmaiadas, um sangue novo circula nas veias exauridas, e por um milagre de afecto renasce para a vida o que a ciência já condenara.
Nas diversas cartas escritas da Madeira para os amigos e familiares, Júlio Dinis também refere o ameno e privilegiado clima do arquipélago, considerando-o menos rigoroso do que o do Continente, com a particularidade de respirar-se melhor e de forma mais leve. Por exemplo, numa missiva endereçada a Custódio Passos, em 5 de Maio de 1869, afirmava: - estou grato a este clima, que, se me não curou de todo, deu-me mais vigor e mais resolução. Em 18 de Outubro voltava a comentar para esse amigo: - o tempo aqui vai magnífico. È um gosto abrir pela manhã a janela a este ar! E em 19 de Dezembro confidenciava-lhe:- a falar verdade, eu sou tão inimigo do frio, que me há-de custar a prescindir na época dele, do benefício desta ilha, onde, devo dizer, apesar do Inverno relativamente desfavorável que tem feito este ano, ainda não senti coisa que em Portugal merecesse o nome de frio. Ponho-me à janela todas as manhãs logo que me levanto, e depois de almoçar, saio fora e vou com a roupa que daí trouxe no Verão.
Além do clima, o escritor ficou encantado com as paisagens madeirenses. Na carta literária de Março de 1870, a que já fizemos referência, alude que para que a Madeira nos sorria, para que nos apareça formosa como a descreve o poeta inglês e fragante como uma verdadeira flor do Oceano, é necessário sair do recinto da cidade, procurar as freguesias rurais, subir as íngremes ladeiras que costeiam os picos e espraiar então a vista pelos formosíssimos vales que vão descobrindo o seio fecundíssimo aos nossos olhos. Que vigor e variedade de vegetação! O verde doirado da cana realça entre as diferentes cambiantes da mesma cor de plantas de todos os climas. A palmeira de África agita a sua fronte graciosa junto dos carvalhos da Europa; a bananeira, vergando sob o peso dos seus cachos, cresce cheia de viço nos mesmos pomares onde se enfeitam de flores os pessegueiros e as laranjeiras odoríferas, As rosas, as malvas, as madressilvas florescem espontâneas à beira dos caminhos; debruçam-se dos muros as buganvílias entretecendo os seus cachos roxos com as flores alaranjadas das begónias; e tudo tem um ar de festa e alegria. A choça mais humilde tem um jardim à entrada; as flores sorriem à porta dos ricos e dos pobres.
Deslumbrado, Júlio Dinis exclama:- quanto mais nos elevamos mais se pronuncia este magnífico aspecto. De um lado vemos, aos nossos pés, o mar liso como um espelho, azul como safira, limitado ao longe pelo grupo das Desertas, vagamente tingidas do azulado da distância; do outro lado, as altas serranias que rompem as nuvens e cujos cimos tantas vezes tinge a ofuscante alvura das neves. E nos flancos, abertos em fendas quebradas, sulcadas em ribeiras pelas torrentes do Inverno, uma vegetação exuberante, cheia de vida, encobrindo aqui uma casa isolada, enfeitando além uma povoação risonha, que se agrupa em torno de um campanário. Então sim, então a atmosfera embriaga, o peito aspira com voluptuosidade esse ar balsâmico, o espírito liberta-se de todas as apreensões que nos gelavam os sorrisos nos lábios e goza-se despreocupado do mais surpreendente espectáculo que pode imaginar-se.
Esse encanto do escritor pela Madeira também colhe-se, claramente, ao recriarmo-nos com a leitura da sua abundante correspondência para o Continente. A título de exemplo, citamos uma carta escrita a Custódio Passos, em 9 de Março de 1969, na qual Júlio Dinis afirmava que a vegetação da ilha não era mais abundante do que a do Minho. Era sim mais variada porque reúne flora dos climas quentes. Isto é que lhe dá um aspecto novo para nós e que me agrada imenso. As casas de campo, num gosto inglês, com os mais bonitos jardins que eu tenho visto, descobrindo-se por entre plantações da cana e adornadas por altas palmeiras, bananeiras e outras árvores tropicais, são de um efeito surpreendente e magnífico.
Porém, quanto à baixa do Funchal, sabemos que Júlio Dinis refere que é feia, triste e melancólica. Confidência até a Custódio Passos, noutra missiva que lhe endereçou em 18 de Abril de 1869, que o próprio passeio público é um largo plantado de árvores, metido entre casas pouco elegantes e com um aspecto triste a que ainda não me pude costumar, pelo que prefiro ficar em casa, mesmo sabendo que ao domingo aí se toca música e vai toda a sociedade da terra.
Mas, se esteticamente a cidade não o deixou entusiasmado, o romancista continuava a realçar que sempre tinha sido bem recebido pelos seus habitantes. Assim, numa missiva escrita em 20 de Outubro de 1867, para o primo José Pinto Coelho, refere que os seus livros já tinham sido lidos no Funchal, apesar de aí não haver nenhuma livraria aberta ao público, salvo para a venda de obras escolares. E adianta:- pouco depois que desembarquei, corria na cidade a notícia da minha chegada. O Damião Moreira lendo a lista de passageiros e conhecendo o meu nome, disse na alfândega que tinha chegado o autor das Pupilas. Meia hora depois de eu entrar em casa, veio um rapaz daqui, de propósito, dar a notícia às minhas patroas que já conheciam o livro. Depois, houve quem não tendo lido o livro sentisse desejos de o ler, por verem o autor. Isto tem dado lugar a muitos cumprimentos na rua, que eu dispensava porque ainda não aprendi a responder-lhes.
E talvez devido a essa timidez, Júlio Dinis, noutra carta enviada em 18 de Abril de 1869, para Custódio Passos, confidenciava que era monótona a vida que levava na ilha, pois não tinha a qualidade que admira em certa gente, de apreciar a convivência, seja quais forem as pessoas com quem convivem; para mim só é realmente agradável a convivência com pessoas muito íntimas, com quem se esteja a vontade. Outro qualquer fadiga-me.
Também, e precisamente por não ser extrovertido, o escritor estranhava o excesso de bisbilhotices que, diariamente, circulavam entre a élite funchalense. Em missiva de 5 de Maio de 1869, comenta ao mesmo amigo:- uma noite houve aqui um baile em casa dum morgado. Os morgados andam por cá a rodo. Pois ao almoço do dia seguinte eu sabia das minhas patroas, que aliás não tinham lá ido, as mínimas particularidades da soirée. As informações distribuem-se aqui logo às horas do leite e do pão quente. Outra impertinência do Funchal é a conversa forçada em doenças do peito. Todos os dias os doentes se encontram nas ruas e informam-se reciprocamente de quanto tossiram, de como passaram a noite, da maior ou menor pressão que sentem, e de mil pequenas coisas a que os doentes dão importância, Não há meio de fugir disto.
Como sabemos, esse peculiar ambiente devia-se ao cunho próprio do turismo terapêutico, que na época era uma importante actividade económica do arquipélago. Deste modo, numa carta datada de 30 de Setembro de 1870, e endereçada a José Pedro da Costa Basto, Júlio Dinis aludia com certo desalento:- este ano a afluência de doentes à Madeira é considerável. Estão todas a casas alugadas e as hospedarias bem fornecidas. Esta circunstância, que é lisonjeira para os que vivem nesta desalentada colónia, para mim não é muito agradável porque aumenta o número de caras amarelas e das organizações deterioradas que encontro pelas ruas. Ás vezes no Funchal pesa uma nuvem de melancolia que se não evita.
Outro grande problema do escritor, relacionava-se com as constantes incertezas e atrasos para receber e enviar a correspondência. Numa missiva escrita ao visconde Júlio de Castilho, em 10 de Abril de 1869, queixava-se: - a chegada dos vapores de Portugal era o acontecimento que mais me alvoroça o coração. Nunca tinha experimentado o que é passar quinze dias em absoluta ignorância do que vai nas casas por onde deixamos os mais íntimos afectos. É desesperador! (...) Viver no meio duma população obsequiadora e afável, mas onde não vemos um só rosto que conhecêssemos quinze dias antes; olhar em volta de nós e encontrar por todos os lados o mar, a separar-nos cruelmente dos nossos amigos e avistar ao longe uma nuvenzita de fumo a prometer-nos as almejadas novas, é enervante, e em grande parte anula os benéficos efeitos deste maravilhoso clima. Noutra carta endereçada a João Pedro da Costa Bravo, a 20 de Janeiro de 1869, dizia-lhe que o mar do Funchal quis finalmente mostrar-se com cara de mar, que ainda lhe não conhecia; salta, ronca e espuma, de maneira que o vapor ainda não pôde descarregar, pelo que qualquer borrasca atrasa ainda mais a recepção de missivas. E em 18 de Abril de 1869, volta a lamentar-se ao amigo Custódio Passos:- dizes-me tu, na tua carta que se esta ilha pertencesse aos ingleses, os meios de comunicação com a metrópole não seriam tão escassos. Sabe pois que os nossos caros aliados não esperaram que a ilha lhes pertencesse, para multiplicarem os vasos de guerra que a frequentam. Enquanto nós os portugueses, só sabemos notícias dos nossos duas vezes ao mês, a colónia inglesa daqui tem-nas da Inglaterra quase de oito em oito dias, e, às vezes, com intervalos mais curtos, pois a cada momento fundeiam na baía do Funchal vapores ingleses, ou de guerra ou mercantes, que andam na carreira de África e vão para o Cabo da Boa Esperança, ou de lá voltam. Causam inveja aqueles diabos que a cada momento me aparecem nas ruas a lerem a correspondência que receberam.
Resta lembrar que durante as suas estadias na Madeira, embora sempre preocupado com a doença, Júlio Dinis nunca deixou de observar e comentar, as incidências da vida politica do arquipélago. Assim, numa carta escrita a 18 de Abril de 1868, para Custódio Passos brada enfadado: - atravessar o mar numa viajem de três dias e, quando se espera estar longe das questionantes da política de freguesia, vir encontrar exactamente o mesmo aqui! Maçam-me com as probabilidades de vitória do Lampreia contra o Agostinho de Ornelas, morgado do Caniço; com as cartas do centro ao bispo e do bispo ao centro, e isto desde pela manhã até à noite. Eu, às vezes, olho para as Desertas, que me ficam fronteiras, três enormes rochedos, onde ninguém habita e apetece-me viver ali para não ouvir falar em eleições e deputados. E menos de um mês depois, ou seja em 5 de Maio de 1869, volta a comentar ao mesmo amigo:- eu imaginava que a ilha da Madeira teria costumes novos para mim, que haveria nesta sociedade uma feição especial. Nada disso; os mesmos cavacos políticos nas praças, as mesmas cerimónias nas salas dos partidos, as mesmas bisbilhotices nos largos, onde se reúne a elite funchalense. É o Porto sem tirar nem pôr, com a única diferença de se entrar aqui mais pelo íntimo das casas para assoalhar o que lá vai. Finalmente, noutra missiva endereçada em 20 de Março de 1870 para José Pedro da Costa Bastos, o escritor volta ao assunto, referindo que no arquipélago a luta eleitoral era descabelada e furiosa como em outras partes. A política da ilha é das mais malcriadas que tenho visto. As gazetas mimoseiam-na com epítetos, um só dos quais daria fundamento suficiente para uma polícia correccional. Eu não pude ainda interessar-me por esta contenda, nem tomar partido entre o décimo quarto morgado do Caniço e o Dr. Fonseca de um lado, e o Herédia e um tal Dr. Vieira do outro, de maneira que fica-me só o recurso de contar os dias que me faltam para mudar de vida
e de terra.
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Excelente trabalho. A história faz-se destas análises e apontamentos, de quem conhece e sabe.
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