segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A Madeira na Obra de Vitorino Memésio


Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva nasceu na ilha Terceira dos Açores, mais precisamente na Praia da Vitória, em 19 de Dezembro de 1901, e faleceu em Lisboa, a 20 de Fevereiro de 1978, tendo sido sepultado a seu pedido em Coimbra, com o inusitado pormenor dos sinos terem ressoado o «Aleluia» em vez do tradicional dobre de finados, tal como havia solicitado ao seu filho.
Vitorino Nemésio começou os seus estudos na Horta, e embora tivesse sentido grandes dificuldades em adaptar-se à vida escolar, em 1922, concluiu o curso liceal na cidade de Coimbra, onde se matriculou na Faculdade de Direito, e ingressou na Maçonaria. Pouco depois optou, definitivamente, pelo curso de Filologia Românica, e obteve a respectiva licenciatura na Faculdade de Letras da «Universidade de Lisboa», em 1931. Três anos depois doutorou-se em Letras e concorreu ao lugar de Professor Catedrático da Universidade de Lisboa, onde de 1956 a 1958, chegou a exercer o cargo director da Faculdade de Letras. Entre 1937 e 1939 leccionou na «Universidade Livre de Bruxelas», e durante o ano de 1958 também deu aulas no Brasil.
Em 1965, pelo valor do conjunto da sua obra, Vitorino Nemésio foi agraciado com o «Prémio Nacional da Literatura», e em 1974, seria ainda aureolado com o prestigiado «Prémio Montaigne».
A par da docência e da intensa actividade literária, Vitorino Nemésio ficou célebre pela sua amizade e correspondência com Miguel Unamuno; e, sobretudo, devido às brilhantes conferências que proferiu como comunicador na «Rádio Televisão Portuguesa», no decurso do afamado programa «Se Bem Me Lembro». Colaborou ainda em vários jornais e revistas, nomeadamente na «Seara Nova»; «Vértice»; «Presença»; «O Diabo»; «Diário Popular» e no «Dia», de que chegou a ser director; sendo que também fundou ainda e dirigiu a «Revista de Portugal» (1937-1940).
Relacionado com a sua actividade docente, Nemésio publicou numerosos ensaios e escorços biográficos de investigação histórica e literária, nomeadamente A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio (1932); Sob os Signos de Agora (1932); Isabel de Aragão, Rainha Santa (1936); Études Portugaises (1938); Ondas Médias (1945); Destino de Gomes Leal (1953); O Campo de São Paulo (1954) e ainda Conhecimento de Poesia (1958).
Vitorino Nemésio foi ainda, um brilhante poeta, cronista e também um notável contista e romancista, muito marcado pelas suas raízes insulares. Como poeta publicou O Bicho Harmonioso (1938); Eu, Comovido a Oeste (1940); Nem Toda a Noite a Vida (1953); O Pão e a Culpa (1955); O Verbo e a Morte (1959); O Cavalo Encantado (1963); Canto de Véspera (1966); e Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas (1976).
Na qualidade de cronista de viagens divulgou O Segredo de Ouro Preto (1954); Corsário das Ilhas (1956); Viagens Ao Pé da Porta (1969); e Jornal do Observador (1974).
Finalmente, como ficcionista Vitorino Nemésio editou o livro de contos Paços do Milhafre (1924), bastante corrigido e aumentado em 1971, com o título O Mistério do Paço do Milhafre; o romance Varanda de Pilatos (1926); as novelas A Casa Fechada (1937); e a sua obra-prima que foi o romance Mau Tempo no Canal (1944), premiado no ano seguinte com o «Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências».
No «Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira» o poeta e académico David Mourão-Ferreira, classificou «Mau Tempo no Canal», como «o primeiro romance português contemporâneo e, porventura, o mais complexo, mais denso e subtil, de toda a nossa literatura. Ao redor do fio central da intriga, (…) e por um processo próximo da tradição do romance inglês – cristalizam-se inúmeros motivos de natureza histórica, social, etnográfica, e muitos eventos mobilizados com extrema perícia pelo engenho inventivo e a impressionante erudição do autor. (…) São por outro lado, eventos entretecidos numa vastíssima tapeçaria, globalmente configurados numa «representação» - fiel e sugestiva – da sociedade açoriana do primeiro quartel deste século. Mas este romance, que é a um tempo, romance de situações e de ambientes, de costumes e de estados de alma, realista e simbólico, sobretudo se define pela dimensão poética, através da qual tudo o mais se avoluma e eterniza».
Mourão Ferreira referiu também que por trás da complexa e multifacetada obra de Vitorino Nemésio, «manifesta-se o incessante apelo do arquipélago natal: através de uma arte de sugestão e de evocação, por meio dos cercos estilísticos mais sábios ou das intuições mais fulgurantes e mais simples, com toda uma simbólica de grande poesia e, ao mesmo tempo, a frescura da genuína inspiração popular; esforçando-se sempre por atingir-se «inteiro», por se reconduzir à infância e à ilha natal, que representam uma e outra, e uma na outra, as imagens de uma perdida unidade».
Por sua vez, na «História Ilustrada das Grandes Literaturas», Óscar Lopes, debruçando-se sobre a poesia do escritor açoriano, comentou «que a arte poética de Vitorino Nemésio é a de fazer falar o menino que sempre trouxe consigo, de início em termos de uma analogia saudosa, depois em termos de uma devoção que, de facto, opera ainda como canção de ninar e como uma aceitação do Pai»
Precisando melhor, Óscar Lopes referiu que os livros de versos publicados por Nemésio agrupam-se claramente em dois ciclos. No primeiro, «a razão da existência (ou o pólo dos valores) é demandada através das saudades de uma infância que se desenha lá longe, nas ilhas, dentro de um aro de ondas salgadas, gaivotas, espuma, e que assume vários rostos mas sobretudo o do Pai e o de um primeiro amor auto-inibido. O tema central percorre a bem dizer toda a sua ficção em prosa e tem a melhor consumação em verso em «O Bicho Harmonioso», 1938, livro que é de longe o da minha preferência, que não da do autor (…)
«O segundo ciclo poético de Nemésio caracteriza-se pela orientação ao Deus católico tradicional (não de seita, mas de abertura ao universal humano), daquilo mesmo que, dentro do primeiro ciclo, expunha as suas feições mais visíveis numa cortante saudade da infância ou adolescência. (…)
«Tal como acontece com o naturalismo sensual e o neoplatonismo agostiniano, ambos renascentistas de Camões, estes dois ciclos da poesia de Nemésio só ganham em ser considerados em todo o espaço das tensões que constituem, sem qualquer amputação e com o mínimo de redução a qualquer modelo mental de interpretação. Toda a religiosidade dos últimos versos de Nemésio palpita em germe até nas cenas mais irreverentes de certos contos e do seu primeiro romance (mesmo em certa corda de sarcasmo e de humor mais vivo); e vamos presenciando sucessivas fases de esmaecimento das cores da paisagem infantil até à brancura, a osso nu, do final».
Resta lembrar que na década de sessenta, mais precisamente com o livro «O Cavalo Encantado» (1963), Vitorino Nemésio abordou a «poesia experimental», utilizando alguns processos neo-barrocos, muito semelhantes a certas experiências dos poetas madeirenses Herberto Helder e António Aragão.

No livro de viagens «Corsários das Ilhas» (1956), o escritor deu-nos uma importante visão do arquipélago da Madeira nos primeiros anos da segunda metade do séc. XX.
Principiou essa abordagem referindo: - «Paralelo 33. A menos de mil quilómetros de Lisboa, menos de mil às Canárias, menos ainda à África (Cabo Branco). É a Madeira. A NE o Porto Santo; a SE as rochosas reticências as Desertas – e tudo isto perfaz o que pomposamente se chamava um arquipélago. O que conta, porém, são os 728Km2 do abreviado mundo madeirense do açúcar, do vinho, da banana, dos picos e das matas.
«É o quarto de milhão de madeirenses aguentando a terra ameaçada nos altos marítimos pelos esboroamentos periódicos, cuidando dos frutos exóticos, das flores de maravilha, da cana e do vime das ribeiras. Secos e tostados, de roupas claras, ainda há pouco empurravam as carretas de carga e os carrinhos de toldo turísticos nas calçadas lustrosas do Funchal. Os garotos mergulham como peixes, da borda das bateiras, a muitos metros de fundo da transparência da baía, capazes de detectarem um disco de cobre de milímetro. As mulheres vindimam e bordam. Os homens apertam as prensas do mosto, rolam as quartolas, remam, feijocam».

Após essa curta introdução ao arquipélago da Madeira e às suas gentes, Vitorino Nemésio abordou de forma sumária o fenómeno da odisseia emigratória dos madeirenses, referindo: - «A ilha formiga de povo, e ainda remenesce gente para ir trabalhar nos Estados Unidos e na África, no Hawai, na Venezuela, como nos fins do século XV já havia saldo demográfico para ajudar a colonizar os Açores e o Brasil».
Acrescentou ainda que apesar dos feitos seculares dos colonos insulares e da sua inevitável partitura da tuba canora e belicosa, «os emigrantes de há cem anos para cá fazem mais ou menos o mesmo e, quanto muito, os felizes são esperados no regresso por alguma filarmónica da Serra, cujos ecos se apagam nos desfiladeiros do mar. O esforço seguido é que importa. Isso é que é sério e duradoiro».
Seguidamente, o escritor açoriano invocou o extraordinário papel da ilha e dos madeirenses na propagação portuguesa por todo o Mundo, e comentou: - «Por alguma coisa a Madeira pôde ser para a nossa expansão marítima o que é hoje o porta-aviões na guerra total e estratégica: um porta-aviões com árvores, canaviais e povinho exercido na arqueação e na pilotagem. Lá vai Diogo de Teive, senhor de engenho de açúcar, ajudar a povoar a Terceira, aumentar as sete ilhas dos Açores com as duas Floreiras em 1450, tocar a borda da América de Nordeste, ou pelo menos as suas águas já sobrevoadas de aves e flutuadas de botelho e rabo-de-asno. João Fernandes do Estreito interessa-se pela gorada aventura americana de Fernão Dulmo, verdadeiro prefácio da viagem triunfal de Colombo, quase que mais perfeito na sua malograda linha do que a obra destinada a vingar. António de Abreu avança às Molucas e à Austrália. Francisco Dornelas Moniz Júnior crisma-se de João Fernandes Vieira para vencer os Guararapes e restaurar Pernambuco».

Depois dos breves intróitos que acabamos de recriar, Vitorino Nemésio passou a descrever uma das suas viagens às Ilhas, começando por informar que, como era habitual, o navio que o transportava para os Açores, fundeou na baía do Porto Santo quando ainda era noite cerrada.
Acrescentou que «já lhe faltava aquela ingenuidade marinha que faz levantar os passageiros cedo para verem surgir, entre os negrumes do céu e do mar, a cobiçada terra… O Porto Santo, aliás é um tropeço nesta rota. Já várias pessoas se queixam da lentidão mortal de semelhante viagem: - doze milhas à hora na era do avião e do átomo! (…)
«Todavia, confesso que apesar do mau humor em que me puseram os primeiros dias de mar, ainda tenho uma radical confiança à esteira dos navios, ao seu morno balanço nas cordagens, à nocturna e fresca paz dos tombadilhos».
Assim, sem grande entusiasmo, o escritor levantou-se pouco depois de o navio ter fundeado, e já no convés, explanou que contemplado de madrugada, o Porto Santo tinha a sua beldade: - «Vejo a ilha seca, esgarçada ao largo da Madeira como cenário de papelão de um amarelo encardido, toda desenhada em aresta viva e com uma corcova a meio. A impressão que conservo é a de uma imensa praia espaldada por uma cortina de relevo semicircular: não uma montanha verde e natural como as outras, mas um pico de areia, um verdadeiro desmonte de materiais de fachina, feito à molhelha. Sente-se naquele telúrico e desolado estendal o espolinhadoiro natural dos coelhos de Bartolomeu Perestrelo. (…)
«Mora ali uma próvida população de escassas centenas de almas entregues à pesca, à cultura da vinha, ao funcionalismo indispensável à cobrança dos impostos e ao içar da bandeira nacional no mastro da Casa da Alfândega. Estas ilhas pequenas e puras, como Porto Santo, Santa Maria, Graciosa, Flores, e sobretudo o miniatural e incrível Corvo, dão-me a impressão de existirem administrativamente apenas como simulacros pueris de ajuntamentos humanos. (…)
«Pobres e minúsculas ilhas de solidão, coroadas de cagarros e de nuvens, onde a vida humana ainda tem, de quando em quando, o sabor dos primeiros dias da criação do mundo… Das espessuras oníricas da minha gaveta de bordo sonho-me corsário ou mercador. Abordamos o Porto Santo em pleno quarto de alva. Já se adivinha na escuridão do calado do paquete um vago livor de dia. O mar é tinta de escrever, mas já a ilha se adivinha abrupta, compacta, a uns quinhentos metros da escada do portaló. (…) É só largar a mala, um ou dois passageiros que vêm não se sabe de onde e vão não se sabe a quê, e aquela meia dúzia de lingadas de carga que mal quebram o silêncio aborrido dos camarotes partem no lanchão solitário em direcção a terra. O que irá ali, meu Deus?... (...)
«Não quero cá saber! Gostaria de ser guarda-fiscal no Porto Santo, não para importunar o único passageiro mensal que vai em demanda da ilha, mas para ouvir chiar os cagarros à minha vontade, e jogar as cartas na Casa do Sal, à luz de uma candeia de azeite de peixe ou de baleia. (…) E talvez ter a elasticidade dos coelhos de Perestrelo nesta ilha austera e bem-amada» …

Em breve o navio zarpou com destino ao porto do Funchal, e Vitorino Nemésio entreteve-se a ver a Madeira avolumar-se, pouco a pouco, cada vez mais nítida… O encanto da Ponta de São Lourenço e o Caniçal bastaram-lhe para encher a chegada, e afirma: - «Era naquela baciazinha íntima, recortada de fragas e falésias, sem ramo verde e quase sem sopro humano, que me apetecia a ficar para sempre. (…)
«A costa da Madeira é uma maravilha. Não há propriamente aldeias, a não ser um ou outro aglomerado mais denso que se aninha junto ao mar. O casario espalha-se pelas encostas da ilha como na cortiça de um presépio, a que o verde das culturas e o almagre das terras peladas dão colorido e relevo.
«Aquela povoação recatada, atalaia meridiana, é Machico; e lembramo-nos logo do casal feliz que a lenda aninhou naquela brecha de rocha, novos Tristão e Iseu da Floresta e do Filtro…
«Decididamente! Tudo convida aqui à solidão de amor. É uma ilusão de quem costeia isto, - este jardim verde, de cabanas brancas, dependurado no mar? Que importa! Enquanto a abordagem dura, vamos vivendo destes fumos…consumindo a nossa porção côngrua de sonho e de utopia, poetizando gratuitamente as costas da Madeira. Da velha espessura florestal que deu o nome à ilha já quase nada resta. Onde chega o homem com os seus dentes e unhas chega logo a machada, o fogo, o alvião. Estas encostas vestiram-se de cana doce e de batata. Os lenhos foram precisos para os chavecos dos pescadores, as traves da casa, as alfaias da lavra do pão.
«Mas o madeirense, se desbastou as matas da colonização, aprendeu a ajeitar a copa das fruteiras e a cortar o cabelo à cepa de verdelho e de cereal».

Pouco depois, dobrada a Ponta do Garajau e com a majestosa baía funchalense à vista, Vitorino Nemésio recordou-se da viajem que tinha realizado à Madeira, em 1924, na companhia de Raul Brandão, e da fantástica descrição que aquele escritor compôs sobre uma famosa feira que então existia na cidade, e comentou: - «Já não vamos encontrar no mercado do Funchal as cataratas de uva, de maracujá, de anona, de pêra e de papaia que faziam o encanto do viajante de há dez anos. Uma vereação empreendedora construiu um mercado monumental e higiénico, cheio de sábias divisões, de andares racionais, de escadas com direito e esquerdo. Foi um grande progresso. Mas é pena que se não tenha arranjado um outro dispositivo às frutas, mantendo a impressão semitropical que davam antigamente os cestos planturosos, as chapadas de cachos ainda com enxames agarrados ao mel dos bagos de oiro e a nota estridente das réstias de pimentos, dos araçás, dos abrunhos, por cima dos quais gralhavam as araras e se espenujavam os periquitos; cujas cores e matizes foram tão magistralmente descritas por Brandão nas «Ilhas Desconhecidas».

Entrando mais estreitamente na descrição da cidade e da sua magnífica baía, Vitorino Nemésio mencionou que se trata do «segundo porto português, depois do de Lisboa, na rosácea de rumos ao longo da bordadura Oeste de África, para o Oriente pelo Cabo, para a América Central e do Sul: o Funchal tão velho como o nosso império marítimo, com o seu bispado metropolitano da África, da Ásia e da América Meridional desde 1512, os seus mercadores flamengos, italianos e ingleses espiando notícias do Além-Mar e comprando vinho e açúcar, o próprio Colombo instalando-se na baixa da vila velha para aprender e repousar.
«Se o casario mudou, o traçado do Funchal mantém-se fundamentalmente como nas eras em que a terra era o nosso viveiro ultramarino: A velha fortaleza de São Lourenço ainda abriga o governo da ilha; só os engenhos de cana e as quintas foram baralhados e dados ao sabor das jogadas do azar de cerca de meio milénio».
Mais à frente, o escritor tornou a lembrar que o pitoresco Funchal que Raul Brandão se deliciou a pintar, desapareceu ou atenuou-se. «O sábio e previdente urbanismo das últimas edilidades deu um inevitável golpe de morte num certo casticismo, talvez parasitário, mas turisticamente singular: os montes de fruta desbordando dos estendais sobre as ruas e praças da cidade; os carrinhos sem rodas deslizando nas calçadas de seixos untados de sebo; os palanquins a ombro de vilãos de calça branca e «palhinhas» trigueiro. Esse Funchal de mágica, espelhado nos foles de bilhetes-postais lustrosos pendentes às portas dos estancos de bordados e de vinho de gargalo empalhado se não morreu de todo, entrou francamente na agonia.
«Foi essa a Madeira de Júlio Dinis e António Nobre. Ainda era a do último Arquiduque reinante da Áustria e da Imperatriz Zita. Não vinha certamente do tempo de Diogo Gomes e de Cadamosto, porque era a acomodação da velha Madeira imperial e colonizadora de trópicos a tempos mais hedonisticamente mercantis e circulados. Mas essa faculdade de adaptação ao forasteiro e ao mareante do largo, esse transformar em blandícia e em gentileza etnográfico o antigo poderio marítimo tinha o encanto que lhe dá a ingenuidade do povo, tão pronto a fornecer galeotes às naus do alto bojo como a dar vendilhões de barretinhos de lã e de bolo de mel embrulhado em celofane.
«O madeirense, aliás, nunca perdeu o seu velho sentido prático endereçado às empresas duradoiras. Defendeu o seu vinho generoso concentrando no Funchal os mostos a tratar e aí envasilhando os néctares consoante as castas e os tipos. Cuidou da sua aguardente fabricando-a também em regime de entreposto selector. Das ramas de açúcar obtido à força de levada fez um produto unificado e garantido. Á indústria de bordados, outrora entregue à fantasia das bordadeiras desprotegidas e esparsas, deu riscos industriais que aliam a fraca da invenção primitiva à decoração moderna. Concentrou a embalagem para a exportação das bananas. Fez enfim do Funchal uma cidade portuária que é ao mesmo tempo antiga, arejada e moderna, com os seus edifícios públicos e particulares de linhas elegantes, respirando desafogados no quadro de uma das mais belas e sedativas paisagens do Mundo».
Vitorino Nemésio dissertou ainda sobre a urbanização típica que se verifica na capital da Madeira; e asseverou: - «É a este éden por fora, com seu purgatório de trabalho bem acusado lá dentro, que rumam os grandes paquetes carregados de europeus desenfadados. O Funchal, para sempre marcado por este vaivém de proas, conservou todavia a sua velha estrutura de tráfico e a sua vizinhança patriarcal de cultivadores e burgueses. Apenas urbanisticamente cerrada no centro, em torno da velha Sé que estendia o seu pastoreio às florestas da Índia e do Brasil, a cidade estende-se pelas encostas como uma grande quinta salpicada de casas de regalo. A não ser os pobres carregadores e vilãozinhos que se abrigam nas casitas das calçadas ou nos curtos telhados do pendor, todo o agenciário expedito e um pouco afortunado tem a sua vivenda sobranceira à baía e desafogada em seu quintal, que desborda para a íngreme ruela com trepadeiras multicores, dá maracujás e bananas, tem legumes e a inevitável parreira carregada de cachos piramidais na sazão. (…)
A arquitectura patriarcal vai sendo varrida pela prosperidade nos sítios mais comunicáveis, invadidos pela estrada e o automóvel. A emigração favorece o madeirense do Sul, que gosta de cal e da nódoa avermelhada dos telhados e já mete a cozinha dentro de casa, abrindo-lhe mais portas e janelas. Mas quem tem meios prefere construir de novo a aumentar ou desfigurar o velho cardenho familiar: por isso o casario se espalha como se uma mão divertida e generosa o semeasse nas vertentes».
E entusiasmado com o clima esfusiante da Madeira, Vitorino Nemésio acrescentou que na ilha «tudo parece novo em folha, graças ao prodígio da luz e à mobilidade vegetal: No fundo, o húmus é o mesmo; os esquemas económicos adaptam de tempos a tempos a velha vestimenta da produção e do trato; a população flutua, mas em parte regressa: Há sempre um fru-fru de folha de cana «mélica» e de folha de vinha caída, pelo qual Zarco, Perestrelo, Afonso do Arco ou Teixeira identificariam ainda hoje a sua ilha perdida, tão bem como um Ornelas, um Camacho, um Pestana ou um Smith «up to date»…
«Para dar a nota do cosmopolitismo da Madeira basta lembrar que o consulado inglês do Funchal está a bater à porta do seu terceiro centenário. Atrás do açúcar veio o vinho capitoso, o porto interposto aos continentes, a abreviatura fantástica das paisagens mais belas e sedantes que o ocioso busca na Terra: montanhas a mil metros, mas também vales aconchegados; interior serrano e recessivo, mas sobretudo costa em anfiteatro. Do brote vulcânico primitivo restam falésias a nu ao rés do litoral, mas a estrutura interna e escoriácea da ilha foi mais ou menos recoberta de uma vegetação caridosa. O corpo eruptivo sossegou, a erosão trabalhou por toda a parte como um cavador diligente e pobre que ajeita o seu pedregal para lenha e culturas. Simplesmente, estes lavradores geomórficos não pensam muito no homem, trabalham para a vista das aves, dos aviadores, dos turistas. Mas tudo é cortado de ravinas, depositado ao fundo de gargantas espiadas do alto por picotos só bons para pássaros ou talvez para alpinistas. E o madeirense, esmagado pela paisagem, acaba por viver como uma formiga caída na dobra de um pão de muito sôlo».

Entrando na descrição das especificidades geográficas e da flora da Madeira, Vitorino Nemésio afiançou que no conjunto da ilha, verificamos «que existem, praticamente dois mundos naturais que só se harmonizam nas cumeeiras: a Madeira do Sul amena e cultivada; a do Norte menos penetrada de mão de homem e, assim, muito mais primitiva. Mas a impressão florestal dominante do tempo do descobrimento e passada ao nome da ilha não é a que hoje se colhe. O Norte, escavado pelos lenhadores e carvoeiros, fez-se relativamente árido e severo. O Sul desdobra-se à vista dos navios costeiros como uma imponente sucessão de vertentes afeiçoadas pelo velho escoar das escórias e das lavas, semeadas de casario esparso e colorido entre uma vasta vegetação de folha perene, ou estendidas em ansas e pontas escalvadas, de surpreendente relevo.
«Os aloés arbóreos contrastam com o azul que enquadra as montanhas; a opúncia ou tabaiba fornece o folhedo para os gados; a pita, a giesta, o seixeiro enfeitam as dobras do terreno ajeitando recessos onde apetece ficar. O litoral acolhedor perfuma-se de murta e de zimbro, a oliveira brava mancha-se de jasmins amarelos. Os jardins das casitas espalhadas em pendor de presépio levantam os seus dragoeiros em flor e os seus escuros barbuzanos. Depois, sobre altos despovoados, estende-se o manto das urzes, dos loureiros e das faias.
«O til, o vinhático e o folhado refugiam-se entalados nas ravinas, às vezes à raiz dos degraus que o madeirense trepa para cuidar das suas culturas nos picos ou terraços aráveis (poios), até que, subindo sempre, a Madeira ultrapassa o seu próprio anel de nuvens e se contenta com feiteiras e moitas de alecrim-da-serra».

Passando a descrever certas características típicas das aldeias madeirenses, Vitorino Nemésio começou por mencionar que «a casa rural confunde-se frequentemente com a arribana e o palheiro; ela própria ainda é muitas vezes coberta de uma capa de colmo. Não havendo praticamente frio nas zonas cultiváveis, não há necessidade de ficar de portas fechadas. O melhor tecto ainda é a copa da árvore e o céu azul. Lavar e cozer é obra para fora de portas. As mulheres bordam na rua; os homens entrançam a mobília de verga ao ar livre; contra o sol, à sombra das fruteiras e da vinha em latada.
«Talvez até a instalação dos gados dê mais que pensar ao madeirense do monte que a própria residência. A inclinação do terreno facilita um pouco a coisa. Assim, é fácil estear um andarzito para granel e arrumação e ter em baixo o abrigo da vaca e do porco. Quando se é muito pobre, vive-se como Deus quer entre a tulha e as alfaias. Para as paredes tanto serve a pedra solta, que é o menos que falta, como a madeira em que a ilha é parca – ou não se chamasse isso mesmo… E a abundância de fibras e de colmo dá o anteparo contra as chuvas, havendo previamente o cuidado de escorrer bem os tectos em três planos que vêm até o chão. É o velho modelo da cabana lenhosa, do tempo de Zarco e de Colombo.
« Em Santana, como a pedra é mais rara, recorre-se em geral exclusivamente à madeira; e, como os declives não abundam, a casa tem de se implantar rectangularmente no terreno e lançar duas fachadas, cobrindo-se de quatro águas. (…)
«Nada ou quase nada de aldeamentos. Cada um procura a vizinhança da nesga de terra que lhe coube ou da terra que granjeou com seu suor, e lá acampa e se ajeita. Ao pé da igreja vendolas, o correio, algumas casas mais gradas. Tudo o resto se inflecte sobre os lombos e os poios, a não ser em vilas como Santa Cruz e Machico, onde a concentração esboçou pequenos núcleos citadinos arejados e dormentes ao mar».

Vitorino Nemésio também se debruçou, atentamente, em volta do prodigioso trabalho e das tradicionais canseiras do povo madeirense; comentando que «era naquela dispersão multiplicada em que o espaço parece que não conta, que uma das populações mais prolíficas e laboriosas de Portugal vive e luta. A riqueza agrária e fruteira não cai do céu: o humo é pouco, numa ilha lavrada por antigas escórias e toda arquitectada em altura: os poios em folhas cultiváveis ficam engastados ao rochedo, e para lá se ir é preciso escalar os desníveis, subir muito a calçada, trepar penedos sem fim e os estrangulamentos das levadas.
«Três e quatro colheitas em dois anos, sim, mas à força de água de rega que, se abunda e borbotoa, rebenta geralmente nas serranias ou vem mesmo através delas do lado norte da ilha, condutada habilmente por meio de depósitos aproveitados do natural e escoados em borbotões que se formam a meia encosta e engrossam as ribeiras e condutas angustiosas – propriamente as «levadas».(…)
«Era a elas que, repartida em lanços de ensarilhada irradiação, o camponês vai buscar o refresco constante das culturas triviais e preciosas: a horta, o pomar, e até a seara e a vinha. São milhões e milhões de litros de água que gorgolejam por toda a parte, dando ao turista a impressão de que todo aquele sangue é fácil no corpo da ilha verdejante, quando custou o suor e a previdência da cadeia de muitas gerações zelosas do interesse dos heréus e inventora dos levadeiros ou vigias, dos juízes, enfim de um complicado sistema de repartição e consumo que, tendo as vantagens empíricas de toda a organização comunal consuetudinária, se opõe todavia a um aproveitamento racional e ao fomento de novas energias».

Antes de findar o interessante estudo sobre o arquipélago da Madeira, o escritor ainda lembrou que «a vida humana, na Madeira, começou contra a Ponta de São Lourenço, nos contrafortes de Leste, que tornavam acessíveis a baía de Machico e o Norte imediato. Mas a parte mais fértil descaía a Ocidente, e foi no Funchal que se fez o estabelecimento mais rendoso. Tanto num ponto como no outro o arvoredo cerrado opunha-se ao progresso do homem, e foi com vastas queimadas que os primeiros terrenos se ganharam. Mas o trigo e a horta em breve se tornaram pretextos para sustentar gente, sobretudo ocupada nos produtos comerciais. As levadas faziam mover os engenhos do açúcar levado à Flandres e ao Mediterrâneo, desde o Adriático ao Bósforo. Depois veio o vinho, à espera da decadência do açúcar para se qualificar como produto de embarque.
«O malvasia ardeu imaginariamente aos olhos de Faltstaff e consolou de certo a garganta de Shakespeare. O boal começou a cintilar nos cristais como um poente. Enfim, as cepas do cerceal procuraram a Boca dos Namorados e os ásperos píncaros da ilha debruçados no Curral das Freiras».

Vitorino Nemésio terminou o trabalho que estamos recriando com palavras de sentido louvor à versatilidade dos explorados e oprimidos camponeses da Madeira, que durante séculos desbravaram a ilha maravilhosa, exclamando com espanto: - «Este «vilão» dos altos é um dos mais plásticos homens das redondezas da Terra. Serrano e marítimo, cultivador e barqueiro, a tudo se afaz. O monte, em tempos céleres e cobiçoso como os nossos, não é nada sem a costa navegada e o Funchal das chegadas e partidas. O vilão desce e sobe: é quase um trepador como os papagaios e periquitos que se ajeita a vender no cais e lhe chegam nos navios de África, com um ou outro saguizinho bom para inculcar ao inglês que chegou esta manhã e embarca esta tarde».

A Madeira

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