segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

António Aragão e o Experimentalismo Literário Portugês


António Manuel de Sousa Aragão Mendes Correia, nasceu em 22 de Outubro de 1921, no Norte da Madeira, mais precisamente na freguesia e concelho de São Vicente. Estudou o ensino secundário no Liceu Jaime Moniz do Funchal, e licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas na «Universidade de Lisboa», tendo ainda estudado Belas Artes em Paris, na Itália, e também na capital.
Exerceu durante muitos anos o cargo de Director do «Arquivo Regional da Madeira», então instalado na Rua da Mouraria do Funchal, e nessas tarefas dirigiu o lançamento e a publicação, duma série de importantes transcrições de documentos relativos à História do arquipélago madeirense.
Foi ainda director da «Casa Museu César Gomes», instalada na Quinta das Cruzes; tendo publicado, em 1970, um vistoso e importante estudo sobre esse relevante núcleo museológico, que denominou «O Museu da Quinta das Cruzes».
Em 1955, António Aragão Mendes Correia, liderou a constituição do «Cine Clube do Funchal», que teve um papel importante na criação duma alternativa ao medíocre cinema comercial da época, em que pontificavam os filmes policiais e de pancadaria; o qual chegou a contar com mais de 400 associados, entre eles o poeta Herberto Hélder; e cuja actividade iria estender-se até os inícios da década seguinte; quando António Aragão e outros associados fundaram o «Cine Forum do Funchal».
João Maurício Marques, no seu livro «Os Faunos do Cinema Madeirense», referiu que o «Cine Clube do Funchal», «durante vários anos efectuou sessões na principal sala de espectáculos da cidade, exibindo nomeadamente filmes europeus, na altura já preteridos pelos distribuidores madeirenses. Numa entrevista ao suplemento cultural «Varanda» do «Diário de Notícias», António Aragão salientava em 1959 que pretendiam desenvolver «uma compreensão crítica e estética em face de cada filme apresentado, elucidando cenas e ideias difíceis de compreender ou que passam vulgarmente despercebidas» A estratégia para captar público era simples: «o que é preciso é dar-lhes mesmo o que eles não pedem nem sabem que existe».
Antes dos anos 60, António Aragão Mendes Correia também participou em exposições de pintura na Madeira, no Continente e até no estrangeiro, tendo ilustrado com esplêndidas gravuras o livro «Canhenhos da Ilha» da autoria do grande escritor madeirense Horácio Bento de Gouveia. Mais tarde, durante um longo período manteve uma galeria de arte em Lisboa, e em 2007, alguns quadros da sua autoria estiveram expostos no «Museu de Arte Contemporânea de Serralves».
Como historiador, António Aragão Mendes Correia publicou, em 1959, «Os Pelourinhos da Madeira»; em 1970, «Para a História do Funchal (pequenos passos da sua memória)»; e ainda «A Madeira Vista por Estrangeiros – 1455-1700»; no qual coordenou e anotou crónicas e trabalhos literários sobre o arquipélago da autoria de Cadamosto (1455), Conde Giulio Landi (1570), Pompeo Arditi, (1577), Hans Sloane (1687), Jonhn Ovington (1689), e William Bolton (1695 – 1700); terminando com uma importante antologia de outras obras realizadas acerca da Madeira, por forasteiros de diversas nacionalidades.
Acresce que, na qualidade de interessado e estudioso das temáticas ligadas à Etnografia e ao Folclore, com a colaboração de Jorge Valdemar Guerra e do músico Artur Andrade; durante todo o ano de 1972, António Aragão elaborou e executou uma importante recolha do cancioneiro tradicional do povo do concelho de Machico.
Por outro lado, antes dos anos 60, e de ter aderido ao «Movimento Experimentalista Poético e Literário Português» de que foi o principal percursor, Aragão Mendes Correia, ainda muito jovem, fez parte da «Tertúlia Ritziana», e em 1946, o seu Conto intitulado «Pressentimento», obteve o 2º lugar nos Jogos Florais organizados pelo Ateneu Comercial do Funchal.
Em 1952, com Herberto Hélder e Jorge Freitas, elaborou algumas poesias que foram publicadas pelo «Eco do Funchal» na colectânea «Arquipélago», onde claramente já revelava certo pendor modernista, como procuraremos demonstrar com a seguinte transcrição:

Do meu passado tudo…
folhas altas secando.
Nos meus olhos – ai barcos –
risos – velas brincando.

Maré cheia em altares;
dedos longos buscando…
Búzio-grande – saudade…
Corre o tempo lembrando.

Alto! Alto! Mar fundo.
Vai o medo subindo.
Marinheiro de pau,
o que estarás sentindo?

No muro do quintal
um ladrão espiando…
Tens esperanças ainda,
Sonho que vais sonhando?

Outra vez o Dilúvio
e Noé navegando?
Foge, foge menino
nem eu sei até quando.

Em 1956, António Aragão, foi o editor e principal impulsionador de revista literária colectiva «Búzio», publicada no Funchal, mas impressa no Porto, para a qual desenhou uma gravura abstracta com características geométricas e modernistas, e escreveu a Nota Introdutória, um poema modernista composto em 1954, outro escrito em 1955, um comentário sobre uma carta de Castilho dirigida a Agostinho Ornelas, e ainda um ensaio intitulado «O Público e as Novas Morfologias», onde já patenteava influências futuristas e revelava a sua inclinação para a ruptura contra os modelos literários tradicionais e a procura de novas formas de expressão artística e poética.
Também colaboraram na revista Edmundo Bettencourt, com três importantes poemas; David Mourão Ferreira com um ensaio intitulado «Nótula sobre o Fundo e a Forma em Poesia»; Eurico de Sousa também com três poesias modernistas; Ester de Lemos com um ensaio sobre uma obra de Orwell intitulado «O Pesa- Papéis»; Herberto Hélder com dois excelentes poemas de influência pós-surrealista; Jorge Sumares com um conto regionalista a que chamou «Rega»; e, finalmente, J. Escada, que escreveu um artigo comentando as exposições de Artes Plásticas de 55 e 56, realizadas em Lisboa.
Explanando um pouco mais as intervenções de António Aragão no «Búzio», começamos por referir que no Preâmbulo dessa revista, o nosso escritor revela que se tratava duma publicação de carácter colectivo «sem periodicidade ou compromisso de ideias ou sistemas; despida de intenções de luta ou cesarismo literário e sem qualquer tipo de monocordismo preconceituoso e intencional». Acrescentava que esse trabalho seria antes de mais «uma natural exigência, e uma requerida consequência viva, inconvencional e amorfa», no sentido que a sua finalidade era só para dizer sem porta-paz de antecipação para a jornada. «De cada um o que cada um possui de diverso, (…) conformado ou inconformado, de cada um a sua linguagem própria, o indivíduo inteiro».
Aragão rematava, afirmando que no seu conjunto «Búzio» era apenas um enfeixar de diversas vozes – «umas desconhecidas, novas e dispersas, outras de que no tempo já muito foi dito. Em particular é uma defesa contra o silêncio, uma espécie de revolta frente ao geografismo imperioso que como uma anulação, impõe constante e unicamente um céu azul por cima e um pitoresco turístico em volta».
No estudo ensaístico inserido na revista, que intitulou «O Público e as Novas Morfologias», que consideramos já possuir alguns ingredientes que anunciavam o Experimentalismo Literário, António Aragão discorreu sobre os diversos tipos de escritos que destroem o convencional e constroem o mistério, dissecando o problema da «dissociação da arte com o público na aguda crise da incompreensão e do consequente repúdio, derivada da mudança de símbolos, da afirmação de novas morfologias, e até do regresso a fontes primitivas capazes de criar mistério. (…) O artista, poderoso iconoclasta, destrói as formas definitivas e destrói devido ao esgotamento das forças misteriosas que as animavam e constrói, com outra morfologia, o mistério. E só ele se apercebe desse esgotamento e da necessidade de destruição – destruição sem sentenças ou elaborados racionalismos, sem prévios padrões políticos, sociais, económicos ou religiosos, destruição assistemática, inviolável, finalizada em si própria, egocêntrica e espontânea».
Em resultado de toda esta ruína dos seus símbolos caídos no caos, António Aragão refere que o público fruidor exaspera-se, pois baralha o convencional e tradicionalmente assente, «confunde os valores fundamentais do homem, a sua moral, a sua cultura, e os seus padrões abalados e ofendidos». Todavia, segundo o nosso escritor, essa dissociação do artista com o público não é para sempre, «porque do contacto sucessivo com a nova morfologia, da constante chamada aos sentidos e ao plano mental, a distância encurta-se e acaba por deixar de existir, tornando-se compreensível o que até parecia ser mero jogo formal. É difícil explicar a passagem psicológica da aceitação, mas é fácil experimentá-la, porque sucede sempre em qualquer época marcada com a mais variada morfologia».
Quanto às duas poesias que António Aragão publicou na revista colectiva de que nos estamos ocupando, adoptam algumas formas vanguardistas, embora ainda não exibam as principais características do «Experimentalismo Poético» que pouco depois o nosso escritor abraçaria, nem o modelo da «Poesia Concreta» que também chegou a cultivar, como veremos adiante. Para o provar vejamos «Génese», escrita em 1954:

Os búzios eram nas trevas
nas trevas brilharam olhos
os olhos rasgaram águas
as águas encheram ventres
os ventres criaram filhos
os filhos comeram terra
a terra deu logo bichas
as bichas pariram bichos
os bichos pejaram ruas
nas ruas nasceram casas
das casas saíram braços
os braços treparam muros
os muros prenderam bocas
as bocas disseram vozes
as vozes gritaram gritos
os gritos tornaram vozes
as vozes passaram muros
dos muros vieram braços
os braços ruíram casas
as casas fizeram ruas
nas ruas havia bichos
os bichos furaram terras
das terras surgiram filhos
os filhos só tinham ventres
os ventres traziam água
a água tapou os olhos
os olhos ficaram trevas

nas trevas cantaram búzios.

Após esta referência genérica à obra histórica, artística e literária de Aragão Mendes Correia, até os anos cinquenta, é altura de estudar e salientar o seu incontornável papel como impulsionador e precursor do «Experimentalismo Literário Português», de parceria com Ernesto Melo e Castro, o grande poeta madeirense Herberto Hélder, e dois ou três outros escritores continentais.
E começamos deste já por referir que de harmonia com o que ocorreu com a Pintura, a Música, o Teatro, e certas áreas das Ciências; o «Experimentalismo Poético e Literário Internacional» surgiu como uma importante tendência do vanguardismo literário da segunda metade do séc. XX, que se distinguiu por atribuir um especial relevo às questões da forma e da estrutura, nos variados fenómenos e manifestações da comunicabilidade artística e literária.
Deste modo, na teorização deste movimento, passaram a assumir grande importância e estatuto determinante, os diversos factores relacionados com a «Linguística Moderna», a «Semiótica», o «Estruturalismo», e, obviamente, os diversos aspectos da «Teoria da Forma e da Informação», de que foram principais interpretes e seguidores no estrangeiro Abraham Moles, Saussure, Jakobson e, sobretudo, o muito citado Levy Strauss.
Em Portugal, o Experimentalismo Poético e Literário ocorreu em Lisboa nos meados dos anos 60, mais precisamente em 1964, com a publicação da «Revista Experimental 1»; muito embora desde os finais de 50 já tivesse começado a germinar, como até podemos verificar ao cotejar os trabalhos literários de António Aragão organizados e divulgados naquele decénio, na Madeira.
Devemos até realçar que essa primeira revista colectiva experimental, ordenada e em grande parte custeada pelo nosso escritor, e de certo modo o Portugal Futurista» de 1917, foram um dos únicos momentos em que a Poesia Portuguesa esteve em sintonia e caminhou a par e passo com as experiências que iam acontecendo no Brasil e um pouco pela Europa e na América do Norte.
Convém também precisar que a postura para-científica dos experimentalistas, nomeadamente a atitude de nos seus escritos e objectos-actos concederem especial relevo à investigação criadora, e a um processo criativo que privilegiava muitíssimo mais o percurso e as peripécias das experiências que iam ensaiando, do que o próprio objecto que acabavam por produzir; tudo isso chocava profundamente grande parte do público e sobretudo os corifeus da crítica da época.
De facto, o novo modelo de comunicação experimentalista navegava em águas muito diferentes e em nítida contra-corrente aos padrões literários e artísticos há muito consagrados e estabelecidos, determinando a desconfiança e a rejeição activa de todas as forças conservadoras, dos tradicionais fruidores, e mesmo do grosso dos críticos artísticos e literários.
Tudo isso era fortemente potenciado pela atitude dos experimentalistas que de modo frontal e inédito convidavam os seus leitores e fruidores para que participassem de forma interactiva, em volta dos diversos objectos da acção ou do acto criativo.
Na verdade, em 1965, o próprio Aragão Mendes Correia, escrevia «que o denominado público, em frente de certos objectos artísticos, deixa de lado a cómoda ou incómoda posição estática de simples receptor de sensações, e passa a actuar como elemento activo, participante e provocador das suas próprias emoções». E para maior escândalo dos empertigados críticos oficiais e oficiosos, Aragão afirmava mesmo que a partir de então, era permitida e concedida a plena e inteira liberdade para que «o imaginário criador dos fruidores também actue sobre a obra de arte, ou seja que a sua imaginação passe de espelho receptivo, a operante, e que ponha de lado para sempre a posição de absoluta subalternidade a que tanto se escravizara».
E, fomentando a perplexidade de grande parte dos costumados consumidores e fruidores, e incrementando ainda mais a vigorosa rejeição da critica conservadora e dominante, António Aragão e os demais experimentalistas também desmontaram o discurso tradicionalista das literaturas ocidentais, propondo e utilizando um novo construtivismo fortemente apoiado no poder e no impacto da «comunicação visual».
Importa também realçar que o «Experimentalismo Português», cujo nome resultou da citada «Revista Experimental», é também um movimento de vanguarda que despontou nitidamente ligado e conexado com as experiências do «Movimento Internacional de Poesia Concreta», surgido em meados da década de 50, no Brasil e também na Europa.
Podemos ainda afirmar que as suas raízes mais profundas e longínquas foram beber no vanguardismo europeu dos primeiros anos do séc. XX, e alimentaram-se, progressivamente, na tradição barroca e maneirista peninsular, que a partir dos anos 60 assumiu uma grande importância. De facto, além das propostas em torno da «poesia concreta e da comunicação visual», a poesia barroca também atraiu grande parte dos experimentalistas, que encontravam nessas obras do passado afinidades idiossincráticas ainda actuais quanto à compreensão da estrutura mental e da sensibilidade artística, bem como manifestações lúdicas e valores retóricos belos e dinâmicos, apesar de haverem caído em completo desuso e esquecimento, e terem passado a ser mal amados pela critica oficial.
Acresce que, conforme referiu Melo e Castro na «Dialéctica dos Vanguardistas», o «surto barroco experimental de 60 deve ser atendido pelo que é: a manifestação critica dinâmica de um mundo em transformação, em que valores fixos vacilam e caem, as formas se multiplicam nas suas particularidades materiais, os materiais se valorizam como definidores do volume, do espaço e do tempo, em relações probabilísticas abertas».

Ainda antes de fazer uma referência mais pormenorizada aos trabalhos literários experimentalistas de António Aragão Mendes Correia, importa tentar descobrir as origens, o itinerário, e as demais raízes históricas do «Experimentalismo Português» dos anos 60. E começamos por salientar que os diversos percursores desse movimento já tinham um longo passado cultural, pois todos haviam publicado livros, e ensaiado outras vivências pessoais, sendo também certo que cada um deles tinha conhecido diferentes práticas literárias.
Na verdade, e como refere Melo e Castro numa longa entrevista dada a Raquel Monteiro, ele próprio havia vivido na Inglaterra entre 52 e 56 «e tinha tido uma experiência muito importante com os britânicos, e continuou a ter muitas relações com o «underground» inglês nos anos 60. (…) A Ana Hatherly tinha vivido na Suiça e em Paris, e era principalmente de formação francesa, mas também com algumas ligações ao mundo inglês. (…) O Herberto Hélder tinha publicado trabalhos na Madeira e a grande experiência dele era coimbrã; sendo um homem de formação pós-surrealista. (…) O António Barahona da Fonseca, era o mais novo de todos e o menos experimental, mas já tinha publicado alguns livros. O José Alberto Marques (…) era um autor que sempre se tinha interessado pelos vanguardismos da década de 10 e de 15 e dos anos 20; o «Orpheu», os futuristas, e também tinha contacto com os letristas».
Quanto ao nosso António Aragão Mendes Correia, que também era pintor, além dos trabalhos que realizou na Madeira nos anos 50, a que já fizemos referência; tinha vivido um curto período em Paris, e muito mais tempo na Itália, onde se especializou como restaurador de obras de arte. E foi precisamente em terras italianas que Aragão conheceu e privou com Emílio Villa, o pai do grupo vanguardista e experimental «INovissimi», com o qual o nosso escritor chegou a colaborar e de quem auferiu bastantes influências.

Mas, para conhecermos melhor a obra de António Aragão Mendes Correia, e a génese do «Experimentalismo Poético Português» e todas as suas manifestações, torna-se indispensável começar por analisar e estudar o primeiro número da «Revista Experimental», publicado em 1964, em que foram principais impulsionadores os madeirenses Herberto Hélder e António Aragão que coordenou e pagou quase toda a edição; os quais receberam a colaboração de Ernesto Melo e Castro, Ana Hatherly, Salette Tavares, Barahona da Fonseca e Ramos Rosa; todos eles escritores que apesar da equivalência de interesses na produção e publicação de experiências vanguardistas, já não eram jovens principiantes, e como já dissemos, tinham editado outros tipos de trabalho, vivido diversas vivências pessoais, e percorrido diferentes itinerários e padrões estilísticos.
O segundo número da «Revista Experimental» foi editado e novamente organizado pelo nosso António Aragão, com alguma colaboração de Melo e Castro e Herberto Hélder, tendo sido divulgado, em 1966, com um texto de Lewis Carrol na contracapa, e com uma curiosa e desusada capa de cartão em forma de envelope grampado, da autoria de Ilídio Ribeiro, contendo folhas soltas, não numeradas e dobradas de forma original, que foram compostas e impressas nas oficinas gráficas da «Escola de Artes e Ofícios do Funchal».
Contém uma separata do músico Jorge Peixinho intitulada «Música e Notação», signos alfabéticos, desenhos caligráficos, e poemas visuais, tais como «Mirakaum» de António Aragão; um texto experimental e quase cabalístico de Herberto Hélder, um poema vanguardista de Eugénio de Melo e Castro, um conto e desenho de Ana Hatherly denominado «Eros Frenético»; a «Composição Aliatória» de Salette Tavares; e outros textos experimentais dos portugueses António Barahona da Fonseca, José Alberto Marques, Luísa Neto Jorge e Álvaro Neto; dos brasileiros Edgard Braga, Pedro Xisto e Heraldo Campos; dos italianos Emídio Vila e Mário Diácono; e ainda dos ingleses Ian Hamilton e Mike Weaver.
Para fazermos uma pequena ideia da grande inovação experimental, introduzida pelas duas Revistas, faremos uma breve transcrição do poema «Mirakaum», escrito por Aragão em 1965, embora com a nota de que apenas nos dará uma pálida ideia, pois não temos condições técnicas para reproduzir os seus numerosos desenhos e efeitos visuais:

em Mirakaum meu reino que me lume
louvado seja louvado seja
me falando o caso de dizer
meu rei nu de Mirakaum
com mexer-se e mas ti gare
ou com boy ando o aumento
guerreiro do olhar
com 30% + 20% + 15% e
DDT e CTT e DSPT
e TNT e ANT e ROBT
e fazer o Q?
e dizer o Q? (segue pequenos efeitos visuais)

Depois desta participação activa e impulsionadora nas «Revistas Experimentais I e II», António Aragão Mendes Correia, sempre animado de propósitos vanguardistas, continuou a enfrentar a critica oficial, a rigidez da censura e a tacanhez de algumas camadas da burguesia conservadora; publicando novos textos experimentais na revista colectiva «Visopoemas».
Em 1967, sempre claramente influenciado pelo Estruturalismo, a Semiótica e a Poesia Virtual, António Aragão, foi um dos principais colaboradores da revista «Operações 1», de índole estruturalista, que para espanto dos basbaques corporativistas e nacionalistas, surgiu envolta num álbum de desmedidas dimensões e com os textos impressos em lâminas de cartolina, provocando ruidosas polémicas e a condenação dos críticos conservadores; seguida meses depois pela «Hidra 2», que também acarretou muitas controvérsias, pelas suas características inovadoras e experimentais, e onde o nosso escritor voltou a publicar trabalhos vanguardistas que escandalizaram e atarantaram as correntes literárias dominantes no nosso País, facto que em nada incomodou o nosso escritor, que segundo nos parece sentia muito gozo com isso, e nunca perdia uma ocasião para melindrar e susceptibilizar os pândegos e balofos burgueses tradicionalistas.
Anos depois, em 1981, e numa altura em que o estruturalismo literário de 60 acusava algum desgaste, Ana Hatherly e Ernesto Melo e Castro, com alguma colaboração de António Aragão e outros experimentalistas publicaram o «Poex – Textos Teóricos e Documentos da Poesia Experimental Portuguesa», que contem a documentação básica do Experimentalismo Poético Português.
Além de toda esta importantíssima e frutuosa colaboração nas revistas colectivas do movimento experimental, António Aragão Mendes Correia, ainda antes da Revolução de 25 de Abril de 1974, sempre fiel às matrizes vanguardistas e experimentalistas publicou em 1962 «O Poema Primeiro»; em 1964, a ficção «Roma nce de Iza Mor f ismo»; em 1966 os poemas «Folheama 1» e «Folheama 2»; em 1970, o poema «Azul e Branco», em 1971, o «Poema Vermelho e Branco»; e ainda o «Buraco na Boca», editado pelo semanário «Comércio do Funchal», onde o nosso escritor também publicou excelentes textos jornalísticos; e que é um romance que consideramos a sua obra-prima, pela elegância da escrita, as subtis abordagens às contradições da condição humana, e sobretudo pela originalidade, mordacidade, e profunda ironia.
Após a Revolução de 25 de Abril, sempre fiel aos cânones do experimentalismo literário, António Aragão publicou em 1975, o poema «Os Bancos»; em 1977 a «Poesia espacial POVO/OVO» (audio-visual); em 1980 a peça de Teatro «Desastre Nu»; em 1981, os textos poéticos «Metanemas»; em Junho de 1982 a 1ª edição da ficção «Pátria, Couves, Deus, etc»; contendo uma curiosa xerografia da sua autoria; e ainda os poemas «Joyciana» (com Alberto Pimenta, Ana Hatherly e Eugénio Melo e Castro); em 1984, publicou a ficção «Os 3 Farros» (com Alberto Pimenta); em Fevereiro de 1992 António Aragão, editou os contos vanguardistas «Textos de Apocalipse», acompanhados duma interessante gravura a cores por ele desenhada; e em 1993 voltou a divulgar «Pátria, Couves, Deus, etc», aumentada com novos textos experimentais, entre outros, «Tesão, Politica, Detergentes, etc».

Chegados aqui, é o momento de precisar que ao contrário do que ambicionaram os escritores neo-realistas portugueses, contemporâneos dos experimentalistas, estes nunca manifestaram qualquer interesse pelas teses e doutrinas marxistas, nem pretenderam intervir com os seus escritos e trabalhos, no processo da luta pela transformação da sociedade, no sentido da libertação da Humanidade de todos os tipos de exploração e opressão, e pelo fim da pobreza, da ignorância e das desigualdades.
Todavia, pelo simples facto de serem vanguardistas, numa conjuntura em que Portugal estava envolvido numa bafienta mas sanguinária Guerra Colonial, e estagnava asfixiado pela censura, pelo obscurantismo e por uma feroz perseguição aos criativos e dissidentes; os experimentalistas passaram a ser olhados pelo regime fascista, como criaturas suspeitas e até perigosas.
E na medida em que, indirectamente, denunciavam as consequências e as implicações do retrocesso cultural que grassava no País, e sobretudo, pelas suas atitudes anti-saudosistas e anti-liricas, os experimentalistas, eram acusados de produzir textos e objectos que escandalizavam as tendências aceites pelo gosto e pelos cânones do estatuto sócio cultural vigente.
A esse respeito, Melo e Castro, na entrevista que concedeu a Raquel Monteiro referiu que a censura chegou a recusar que um dos seus poemas fosse publicado, pois era considerado danoso, «embora não soubessem sequer que era contra eles, porque eram estúpidos como uma porta, mas sabiam que era perigoso e sentiam-se ameaçados».
Todavia, após a revolução de 25 de Abril de 1974, o punhado de experimentalistas que restaram fiéis ao espírito matricial do movimento, declararam-se frontalmente antifascistas, como facilmente podemos concluir da leitura dos trabalhos de António Aragão publicados após essa data, e também de alguns textos de Melo e Castro, Ana Hatherley, Alberto Pimenta, Salette Tavares e do madeirense Silvestre Pestana.
O próprio autor do presente ensaio colaborou com António Aragão Mendes Correia na confecção e distribuição duma folha humorística intitulada «O Lixo», coordenada e em grande parte escrita pelo nosso escritor, denunciando com muita ironia e corrosivo sarcasmo, uma série de atentados regionais contra as liberdades e o espírito de Abril.
Resta afirmar que nos dias de hoje, o experimentalismo ainda conhece alguma visibilidade e afirmação. Na verdade, num recente artigo publicado na importante Revista espanhola «Espacio Escrito 11/12» (Badajoz, 1995); Ernesto Melo e Castro e Ana Hatherly, declararam que a «Poesia Visual» no nosso tempo, «era uma alternativa ao hiper-subjectivismo e decadentismo que invadiram a poesia a partir dos anos 80. Dadas as suas grandes potencialidades de comunicação, ela pode veicular um optimismo construtivista que claramente se opõe às tendências metafísico-decadentes, típicas de um certo pós-modernismo que para nós, herdeiros da tradição barroca, aparece destituído de interesse. Actualmente a «Poesia Experimental» encontra uma renovação justificada, opondo-se aos valores economicistas da nova selva da sociedade neo-capitalista. Do mesmo modo como se opuseram ao fascismo e ao realismo socialista, os poetas experimentais, que continuam activamente produzindo, são agora hipercríticos do modelo consumista aplicado a todas as actividades humanas».

A terminar, cumpre lembrar que António Aragão Mendes Correia, apesar de se encontrar bastante doente e de ter deixado de escrever, com toda a justiça foi reconhecido, publicamente, pela Câmara Municipal do Funchal, como sendo um dos mais importantes homens da cultura e das letras madeirense, tendo sido homenageado, em 2007, por aquele Município, que deu o seu nome a uma rua na freguesia de Santo António, em ligação com outro arruamento que ostenta o nome de Edmundo Bettencourt, que também é outra grande e incontornável figura da literatura do Arquipélago.

2 comentários:

  1. magnifico
    vou mandar fotos do meu ultimo encontro com ele.
    falava eu outro dia que aragao era uma das minhas 3 maes
    duas delas mortas
    uma ainda nao

    abraço e agradeço

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  2. Que grandíssimo homem da Cultura era o madeirense Antônio Aragão!Que texto esclarecedor, belo e relevante.Estudá-lo-ei porque muito me despertou a atenção a a trajetória do escritor, poeta e artista, bem como atuação e o legado de Aragão. Obg por disponibilizá-lo, Rui. Um abraço cordial desde o Brasil ;)

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