segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
Conto - O Dia Último e o Gosta da Liberdade
Abril de 1974 aproximava-se do fim e atravessava um período difícil e conturbado, vivendo em permanente estado de tensão e ansiedade.
Em Janeiro assaltaram o meu escritório, arrombaram o cofre, esventraram gavetas e armários, e espalharam pelo chão papéis e livros e pap depois de terem sido vasculhados e devassados. Simulando um roubo, os assaltantes que nada furtaram, deixaram caída uma nota de cinquenta escudos, junto da porta, embora eu bem soubesse que nem um centavo lá tinha guardado…
Prontamente pressenti que a PIDE apertava o cerco e procurava provas para me prender – facto que mais tarde me seria confirmado. De resto, já há algum tempo desencaminhavam cartas e correspondência, ouvia atroadas estranhas nos telefones de casa e do escritório e, por vezes, sentia-me vigiado...
Sabia que tinham intensificado as lutas populares no Continente e que, em Setembro, reuniram-se num monte alentejano, perto de Évora, o grupo de militares democratas, que deram início ao Movimento dos Capitães, destinado a restaurar as Liberdades, a Democracia e a encetar o processo de Descolonização. Acresce que pouco antes tinha jantado com um tenente-coronel que combatia na Guiné e gozava o seu mês de descanso na Madeira, e esse amigo confirmou-me que naquela colónia o MFA já estava operacional...
Todavia, nem tudo eram boas notícias, pois também tinha sido informado que devia reforçar as cautelas, pois nas alfurjas fascistas da capital, Kaulza de Arriaga e um bando de oficiais reaccionários estavam delineando a preparação dum golpe da extrema-direita.
Na noite de 24 de Abril, para esconjurar as insónias que já se tinham tornado habituais, completei a leitura do «Portugal e o Futuro» publicado em Fevereiro por António de Spínola, onde esse general concluía que «não era pela força» que poderíamos conservar o Ultramar. «Desejamos que Portugal seja um país progressivo e de paz, incorporando parcelas africanas prósperas e portuguesas por autodeterminação das suas gentes. (…) É mister que dialoguemos com os africanos e defendamos uma ampla descentralização de poderes (…) num quadro de raiz federativa».
Com certa mágoa conjecturei que Spínola escrevera palavras bonitas e ousadas, mas já era demasiado tarde… Depois de treze anos de guerra, de desmedidas violências, e de centenas de milhar de mortos e feridos, seria impossível concretizar qualquer modalidade de «Estados Federados»... Se fosse em 1962, quando em Angola, com o Alegre e outros oficiais estávamos maquinando uma conjura que tornasse possível o fim da guerra colonial e a progressiva descolonização… então, talvez houvesse alguma razoabilidade em pensar assim … mas agora…
E ainda sem sono, recordei com saudades o camarada e amigo Manuel Alegre, que tinha sido enclausurado e torturado, em Luanda, por planejar a autodeterminação das colónias; mas que, honradamente, não nos denunciara.
Com essa lembrança, uma vez mais atormentei-me, magicando que poderia ser preso… e não suportar as torturas… E lá vinha a pungente angústia… pois nunca me perdoaria se delatasse algo de importante à PIDE…
Apesar dessas sombrias cogitações, já dormitava, quando acordei, sobressaltado, com o telefone a retinir. Pouco passava das sete horas, e do outro lado, ouvi a voz do meu camarada Anjos Teixeira, que com alguma inquietação perguntava se eu sabia quem teria desencadeado o levantamento, que acabara de ouvir pela telefonia…
Ansioso, nada disse à mulher, vesti-me num ápice, entrei no quarto dos filhos, que dormiam profundamente, e temendo pelo futuro deles se fosse um golpe da extrema-direita, entrei no carro, e como um autómato, rodei em direcção à Choupana, com o ouvido pregado no rádio…
Falavam de nomes que ainda desconhecia. Otelo que era o estratega… Costa Marques que tinha tomado o aeroporto… um tal Vítor Crespo da Marinha…
De repente, informaram que um jovem capitão de cavalaria, que mais tarde soube chamar-se Salgueiro Maia, se preparava para «ocupar o Quartel do Carmo», «prender os cabecilhas do regime», «devolver a dignidade ao povo português», e «restaurar as Liberdades». Então, já não podia duvidar mais… eram os nossos… os bravos capitães do Movimento das Forças Armadas, que conquistavam a Democracia… e a Liberdade…
Começara, assim, o dia mais maravilhoso da minha vida… Saltei do carro e gritei a plenos pulmões, «Viva a Liberdade» … «Viva a Liberdade» … «Fascismo nunca mais» … Pouco depois, como um doido retornei a casa; e chorando de alegria beijei a mulher, e apertei os filhos contra o peito… que me olhavam boquiabertos…
Dando asas à alegria desatei a telefonar para os camaradas mais próximos, sempre de ouvido na rádio… não fosse o diabo tecê-las…Mas não, … as notícias até eram cada vez mais estimulantes…o movimento popular já estava na rua… confraternizavam com os soldados… e milhares de vozes gritavam: «O povo unido jamais será vencido» … «O povo unido jamais será vencido.»
Entretanto, do Quartel do Carmo informavam que os capitães passariam o poder ao general António de Spínola. Pasmei por instantes… o Spínola do monóculo e povo unido não ligavam bem… Era como gota de azeite em copo com água cristalina…
Mas, bem depressa essa pequena sombra desvaneceu-se por completo. O dia era de festa, de utopia, e de regozijo. Entusiasmado, dirigi-me para o «Apolo», onde já convergiam, abraçavam-se e confraternizavam amigos e camaradas; e todos vivemos horas de alegria e esperança.
No dia seguinte, na companhia do António Aragão, dirigimo-nos para a redacção do «Comércio do Funchal», a fim de preparar o que seria o grande cortejo do 1º de Maio. Pelo caminho reparei em dois PIDES, que me pareceram «apardalados» … e pouco depois abracei três trabalhadores, que sem bem saberem ainda o que se passava, ouviram-me falar-lhes… no socialismo… e num mundo melhor e mais justo…
Passaram já mais de trinta e quatro anos! Um dos PIDES ainda o vejo por aí, contente e satisfeito … apesar de tudo.
Dois daqueles trabalhadores já morreram, … pobres e explorados … apenas um pouco menos oprimidos…
O outro operário, sobrevive com uma pensão que apenas lhe chega para comer… e dificilmente consegue pagar a farmácia… Porém, todas as semanas encontro-o cheio de ânimo e alegria. Aperto-lhe a mão e aguento-lhe os olhos que brilham de esperança e coragem; ouvindo-o dizer-me com fervor e entusiasmo: Camarada, a luta continua…a luta continua…
Respondo-lhe que sim, que nada é eterno, que tudo muda, que um dia a Humanidade vencerá…Porém, querido camarada, ainda há tanto, … tanto mar por navegar…
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