segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A Madeira na Obra de Ferreira de Castro


José Maria Ferreira de Castro nasceu na vila de Ossela – Oliveira de Azeméis, em 1898, e faleceu no Porto no ano de 1974. Em 1911, com apenas 13 anos de idade emigrou para o Brasil, tendo regressado, definitivamente, a Portugal, em 1919.
Foi um brilhante jornalista e um dos maiores escritores da História da Literatura Portuguesa, tendo recebido o «Prémio Ricardo Malheiros» da Academia de Ciências de Lisboa, em 1934; o «Prémio Catenaci», da Academia de Belas Artes de Paris, em 1965; o «Prémio Águia de Ouro» do Festival do Livro de Nice, em 1970; e o «Prémio Latinidade» da Academia Mundo Latino de Paris, em 1971.
Como jornalista fundou o jornal a «Hora» (1934) e foi director da Revista «ABC», do magazine «Civilização» e do semanário «O Diabo»; tendo também sido, durante muitos anos, redactor do jornal «O Século».
Como escritor, além de percursor da escola neo-realista, foi o autor português mais traduzido no estrangeiro, destacando-se entre as suas principais obras «Emigrantes» (1928), «A Selva» (1930); «Eternidade» (1933); «Terra Fria» (1934); «Pequenos Mundos» (1937); «A Tempestade» (1940); «Volta ao Mundo» (1944), «A Lã e a Neve» (1947); «A Curva da Estrada» (1950); «As Maravilhas Artísticas do Mundo» (1961); e «Instinto Supremo» (1968).
Nos seus livros «A Eternidade» e «Pequenos Mundos», com a força e o deslumbramento que vem do coração e dos sentidos, Ferreira de Castro descreveu o fantástico mundo do Arquipélago da Madeira nos anos trinta do século XX. Mas, antes de relatar a Ilha com alguma minúcia, profundamente deprimido pela morte da sua companheira Diana de Liz, desferiu no pórtico da «Eternidade», um sentido grito contra a vida do Homem, que mesmo usufruindo a magia duma terra tão bela quanto a Madeira, tem vivido permanentemente esmagado por opressões, renúncias e misérias, e atribulado pelo constante temor da doença e da morte.
Apesar dessa fragilidade da condição humana, o escritor expressou uma clara afirmação de esperança e certeza num futuro risonho da Humanidade, clamando convicto: - «meu irmão longínquo nós não queremos morrer, apesar desta vida pletórica de iniquidades, ignorância e dores inúteis, a odiarmo-nos uns aos outros, a massacrarmo-nos uns aos outros, e a espoliarmo-nos uns aos outros. (...) Tu que já mataste a morte, que já criaste o novo mundo sobre o mundo em que vivemos, que já tens uma outra noção do Homem e do Universo, dificilmente compreenderás como nos foi possível viver assim. Este romance, será uma voz remota que dirá quanto sofremos e lutamos para que tu possas viver de outra maneira. (...) Sei que te apossarás do Universo, que dominarás os seus segredos e as suas leis e que te tornarás senhor da vida. Mas tu que triunfaste da morte e dos instintos, que és inteligência e não paixão, compreensão e não ressentimento, não te rias de nós, porque sem nós não terias existido, porque és filho da nossa inquietação milenária»...

Depois desse brado de dor e de esperança, no livro de viagens, «Pequenos Mundos», Ferreira de Castro descreveu o fascínio do viajante ao abeirar-se do arquipélago madeirense. «Do mar avista-se o Porto Santo, que vai crescendo, mudando de forma e de cor, à medida que nos acercamos. Já não se mostra negro mas pardo; há mesmo ao longe doirados de praias e brancuras de casitas, também vizinhas do mar. Faceiras umas, modestíssimas outras, parecem que estão ali a refrescar-se ou à espera de que regressem os pescadores. (...) Algumas abalaram encosta arriba, dispersaram-se e pararam, de janelas abertas, antes de atingir o grupo familiar – a Vila Baleira que nos sorri, enfeitiçadoramente».
Mansamente, o vapor afasta-se da ilha dourada, e poucas horas depois ultrapassa a Ponta de São Lourenço, passando a navegar em águas da Madeira. Encostado à amurada o romancista encanta-se com a vista de Machico, «que surge no regaço de duas montanhas, à beira-mar. As níveas casas aglomeram-se por detrás de um renque de arvoredo, junto à praia; e espalham-se, depois, na encosta protectora, branquejando entre o verde da paisagem».
À antiga sede da capitania de Tristão Vaz, palco onde o lendário Machim representou o seu drama de amor, «em breve sucede a vila de Santa Cruz, branca também. As árvores já se apropriaram da terra e as arribas tornaram-se mais delicadas. Vistas do mar, estes pulcros povoados têm algo de presépio, volume, expressão e ternuras de construção infantil».
Brandamente, o navio aproxima-se do ancoradouro, torneia o Garajau e de súbito, surge a apoteose da baía do Funchal, «com o escuro da paisagem acidentada até ali, descendo vertentes, elevando-se em montanhas e formando imponente conjunto de saliências, quedas e desvãos, aclareando em verde cada vez mais fresco, em policromia mais deslumbrante cada vez. O encanto começava, cá em baixo, na enseada ampla, onde ancoram os navios e os olhos rejubilavam no anfiteatro imenso. Era um deslumbramento a terra, que, escondendo os cumes entre castelos de bruma, irisados e quiméricos, vinha escorregando, com seus parques, suas quintas, suas airosas vivendas a espreitar de entre as fartas cabeleiras de arvoredo, até à fímbria do oceano, onde o casario da cidade se aglomerava, se chegava um ao outro, como se estivesse friorento – ali onde nunca havia frio. (…) Subisse a curiosidade o declive central, riscado pelo serpenteio das ribeiras, ou vadiasse pelas bandas arqueadas, o sortilégio mantinha-se imperecível».
Lá por cima, actividades turísticas assenhorearam-se da riqueza panorâmica, «edificando hotéis e abrindo edílicas esplanadas, de onde devia ser grato assistir ao espectáculo marítimo à hora do crepúsculo, mas ao pormenor sobrepunha-se o todo, que, de tão belo, dir-se-ia obra de fantasioso artista. Cá em baixo, na ampla baía, barquitos de bomboteiros cercam o vapor, carregados de artefactos de verga, cadeirões, mesas, cestos e outros mimos que os homens da Camacha e até mesmo dali do Funchal entrançavam dia e noite, em conquista do pão sempre difícil. Outros luziam com os bordados que falavam de arte anónima e paciente, de vida precária transformada em sublimes delicadezas».
Após fundear o navio também era rodeado por coloridas canoas, «onde rapazes que deviam andar na escola e outros que já teriam saído dos quartéis, expunham e ofereciam as suas habilidades de mergulhadores eméritos: Patrãozinho!... Patrãozinho! E se o solicitado atirava a moeda desejada, logo eles se lançavam à água e iam a três, quatro e mais metros capturar a rodela, que marchava, lépida, para o fundo».
Após as peripécias do desembarque, Ferreira de Castro embrenhou-se no centro da cidade; e encanta-se com os espaços «pincelados por modestas mas dignas moradias particulares, cheias de claridade e de uma paz que se desprende de tudo. Em certos trechos julga-se que vai passar estranha procissão, pois muros e ventanas ostentam pomposas colchas de buganvílias em flor, grandes manchas de vermelho e de roxo que dão às ruas alacre fisionomia».
No romance «Eternidade», o escritor descreve ainda o bulício citadino contemplado de uma mesa do café Golden Gate, comentando que «aquele ângulo do Funchal era, entre as esquinas do Mundo, um dos mais dobrado, em todos os dias do ano, pelo espírito cosmopolita do século. Em peregrinação, de recreio ou em trânsito para África e Américas, davam volta ao cunhal do Golden Gate, diariamente, homens e mulheres de quase todas as nações».
Afastando-se dessa fervilhante e pitoresca zona, o escritor abeirou-se de certos recantos mais longínquos da cidade de aparência velha, «com ruas estreitas e soturnas, as lojas de velho estilo comercial, as paredes enegrecidas pelo tempo e caminhos ensebados onde, arrastados por cavalos, passavam, em faina de transporte, as corças regionais – dois paus revestidos, na parte inferior por lâmina de ferro e presos, paralelamente, por fortes travessas que serviam também de apoio às pipas, caixas e fardos, que iam de um lado para outro». Mas depressa, volta a caminhar por áleas mais coloridas e acolhedoras, que pesquisa com muito agrado e entusiasmo.
Ferreira de Castro explanou também a vida alegre e descuidada das pousadas e hotéis funchalenses, começando pelo Reid's «com as suas janelas e varandas iluminadas, que dir-se-ia um navio encalhado na terra alta», seguido do Savoy outrora pequeno, «quinze ou vinte quartos espreitando o mar, onde depois fora construído um hotel de muitos andares, ladeado, o primeiro, por longa varanda e fechado o último, por terraço tão amplo que nele se poderia jogar o ténnis».
Também não lhe passou despercebido que os estrangeiros já não iam, em repouso, como outrora, para as quintas da meia encosta, alheios aos fascínios da civilização - «agora instalavam-se nos hotéis, ansiosos de vida, sobretudo de liberdade sexual» e delirantes divertimentos. Todas as noites, «elas envoltas em abafos opulentos, que a temperatura da noite funchalense tornava inúteis; eles, em cabelo e muito direitos no seu smoking», desciam divertidos a caminho do Casino, onde se aturdiam até de madrugada.
Em «Pequenos Mundos», o escritor volta a falar desses dois modernos e requintados estabelecimentos hoteleiros, precisando que embora estejam um pouco afastados da baixa urbana, resplendem com soberbos vultos vegetais, «e refulgem com a mesma profusão de flores e esguias araucárias, que recortam suas rendadas tranças na diafaneidade do Céu».
Na «Eternidade», Ferreira de Castro descreveu a espectacular noite de São Silvestre, em que se tornou costume saudar o ano nascente e fazer ao morto coruscantes funerais com festas pirotécnicas. «Antes mesmo de cair a meia-noite sobre o último santo do calendário, portas e janelas da cidade, fossem de vivendas modernas, de velhos e austeros palácios ou de pobres casebres, começavam a esparrinhar fogo na grande encosta, enchendo-se a escuridão de lumaréus, vomitando estrelas e lágrimas, flamas que erravam um momento e logo se apagavam, dando lugar a outras, que traziam todas as cores do arco-íris e se entrançavam e se perdiam num espectáculo demoníaco, fantasmagórico e inesquecível. Tudo ardia, tudo fulgurava; já não existia a terra; vivia-se num outro mundo. A noite era uma apoteose aos génios do mar, tremeluzia, fulgurava, incendiava-se toda, apoteoticamente». Idêntica alacridade prolongava-se na baía, «onde alegorias de fogo iam descendo para as profundidades do mar, entre os navios que salvavam o ano novo, e as lanchas que andavam em vadiagem festiva, com bandeirolas e luminárias».
Nos «Pequenos Mundos», depois de descrever as variadas actividades turísticas, Ferreira de Castro analisou a difícil situação da vinicultura, então em grande decadência, «em virtude de outras regiões do Mundo terem conseguido que os seus vinhos superassem, senão em qualidade, em consumo o Madeira». Deste modo, lamenta que nas primeiras décadas do séc. XX, a exportação dos vinhos da ilha tenha diminuído de forma significativa devido, sobretudo, à concorrência do vinho do Porto, então na moda em grande parte da Europa, onde em alguns países, nomeadamente na França, o Madeira passou a empregar-se, «mais como condimento do que como bebida».
Mas, foi sobre a indústria de bordados e o quotidiano das bordadeiras, que Ferreira de Castro mais demoradamente se ocupou. Na «Eternidade», refere, que «às portas das choupanas, esgotando as pupilas no aproveitamento da última claridade, que era riqueza de quem outra não usufruía, mães e filhas sentavam-se a bordar. Havia-as tão velhotas que já não tiravam ilhó sem óculos montados no nariz, e tão novas que se julgaria que a agulha e a linha eram nas suas mãos apenas um brinquedo. Estavam assim desde manhã, dando aos bordados todo o tempo que sobejava da vida doméstica ou da faina dos campos. Enternecido, o escritor compadeceu-se da sorte de milhares de bordadeiras que trabalhavam quinze, a dezasseis horas, em cada dia, porque só assim conseguiam ganhar duas ou três míseras patacas, anotando «que nem na sua idade de oiro, o mester apagava de todo a fome das que lhe davam olhos, mãos e pulmões debilitados, pois se lucros havia que se acumulassem em riqueza, não era para quem produzia, mas para quem exportava».
O romancista acrescentou que naquela actividade ainda trabalhava quase metade da população da ilha, ou seja sessenta a setenta mil mulheres, apesar de nas primeiras décadas do séc. XX já serem visíveis os indícios de forte recessão, «em virtude da questão dos sanatórios, fomentada pelos ingleses», que forçaram muitos empresários alemães a deixar de investir na Madeira. Referiu ainda que os Sírios que substituíram os germânicos à cabeça da indústria, já não imprimiam tanta qualidade na produção, nem possuíam idêntico poder comercial, determinando graves problemas no sector, com todo o caudal de descalça pobreza e exclusão social.
Mas, apesar da conjuntura desfavorável, ainda havia algumas grandes fábricas, que o escritor visitou, começando por descrever o depósito dos bordados, «que era um quadrilongo onde, sobre largas mesas, algumas raparigas etiquetavam lenços, toalhas e guardanapos, que dois homens iam dispondo em pequenas caixas». Desse sector passa-se à secção de lavagem e secagem, com «braseiros para aquecer os ferros de engomar e tanques de cimento por toda a parte, onde os bordados eram lavados por outras mulheres, e todas pingavam miséria dentro das suas roupas encardidas e sob o cabelo desgrenhado. Enquanto estas curvadas sobre os tanques lavavam, aquelas iam passando a ferro, em longas mesas, os que já estavam secos. Cheirava a suor, a brasido, a água suja – e a temperatura era quente e pesada». No andar de cima instalava-se a secção de desenho, estampagem e corte, formada por uma ou duas divisões, «onde um homem fazia os desenhos num papel e depois picotava-os. Coloca depois esse papel sobre os tecidos e, passando por cima um pincel com tinta, estampa o desenho que as bordadeiras hão-de cobrir com linha».

Além da cidade do Funchal e do quotidiano dos seus habitantes, Ferreira de Castro, descreveu muitas das paisagens e dos ambientes típicos das aldeias e das montanhas madeirenses.
Na «Eternidade», desfolha uma excursão à vila de São Vicente, iniciada em Câmara de Lobos - «povoação alegre, de casas achegadinhas à sua angra pitoresca, e logo trepando mais modestas, para curto planalto, que dir-se-ia nascido com destino de velho forte. Luzia em baixo, a sua igreja, com árvores a ensombrar o adro»; mas, profanando o deleite de todo o conjunto, o escritor lamenta «a mancha triste do bairro infecto de insólita miséria, que macula a zona onde vivem os pescadores».
Dessa parte do caminho, distinguiam ao longe o Cabo Girão, «donde se espreitava a imponência trágica do Oceano, a ulular lá em baixo, muito em baixo. Mais acima, o Estreito assinalava trabalho constante e rude, para a conquista do pão – e era um encanto para a vista, as casitas que, dispostas ao acaso, ostentavam gelosias verdes e telhados vermelhos. (...) Se fosse Verão o deslumbramento seria maior, com as vides enfolhadas a delimitar todos os campos».
A meio caminho, na brusca descida para a Ribeira Brava, «a povoação parecia bordada por duas dezenas de moradias em volta da igreja e outras dispersas nos montes que protegiam o burgo agachado à beira do Oceano. (…) No meio, corria o leito da ribeira, e vale acima, os choupos, raros na ilha, erguiam o perfil esguio e melancólico».
Daí, encetava-se a subida para a Encumeada, e a vertente alargava-se tanto, «que para unir as duas bandas, seria agora necessário ponte de muitos quilómetros. Os olhos fascinados procuravam as ravinas, os socalcos, tudo quanto lá ao fundo se expunha à sombra e ao sol (...). As rochas imensuráveis tomavam múltiplas expressões, com a sua cabeleira ora verde, ora parda e de recorte fantasioso, agora de linhas bruscas, fortes, esmagadoras, logo de traços tão delicados, que dir-se-ia esculpidas, remotamente, na matéria bruta».
Depois de calcorrear a íngreme ladeira, chegam à Encumeada que em «Pequenos Mundos», o romancista descreveu «como o lombo do acinzentado espinhaço que corre, em gigantescas corcovas, de um a outro extremo da Madeira. Daí os olhos abrangem as duas bandas da ilha e tem-se, finalmente, sensação de vida insulada. (...) Para o Sul, a vista baixava, entre a soberbia deslumbrante das montanhas até à Ribeira Brava e o mar; para Norte, ia entre urzes e loureiros, salvando serranias e abismos, para alcançar o Atlântico que banha São Vicente».
Descia-se para a costa setentrional da ilha, caminhando «entre mata serrada, onde centenárias urzes haviam-se transformado de arbustos em árvores de grossos e retorcidos troncos. (...) Por entre elas, serra acima e serra abaixo, os loureiros entregavam ao sol as suas folhas de verde vivo e muito lustroso». Finalmente, chegam a São Vicente, «sufocado num corredor de montanha. Lá está, de novo o mar, com o seu negro cascalho ribeirinho, suas fantasiosas arribas, e encostada em solitário rochedo uma capelita. O Atlântico, em seu azul riscado de branca espuma, com pequenas velas na largura, apresenta-se em orgulhosa fulgência, como se vestisse as melhores galas para cortejar a terra linda».

Na «Eternidade», o escritor volta a mostrar-se impressionado com a serena majestade da Cordilheira Central, estendida a todo o comprimento da ilha, «que dir-se-ia que se derretera pelas bandas, escorregando lentamente, para um lado e outro, a massa ainda informe. Nascia na vizinhança da Ponta de São Lourenço e crescendo, ora em curvas de lombo de dromedário, ora em ondulações mais largas, lá ia gigantesca e ciclópica, até a Ponta do Pargo e Porto Moniz, verdejando em sussurrantes bosques no Santo da Serra; e tomba aqui, levanta acolá, entregava ao sol a calvície do Poiso, abrindo depois a bocarra enorme no Curral das Freiras e formando além, por súbito capricho, a terra lisa do Paul da Serra, tão alta que para a ver ter-se ia de subir, desde o nível do oceano até ela, mais de um milhar de metros. (...) Ao centro recortava-se o Pico Ruivo, o mais alto dos tunantes seus irmãos, que pretendiam furarem a película do céu».
A serenidade que se respirava nas serranias e por toda a Ilha, era mutilada, embora muito raramente, pela terrível armadilha das «quebradas». Então, quando tal acontecia, «quer fosse noite nas líricas solidões, quer dia alto que pusesse à mostra todos os recôncavos, a terra dava em desprender uma lasca, que podia ser de uma só, mas também de muitas toneladas. E, na descida brusca, de ruído monstruoso e eco prolongado, arrastava tudo quanto se lhe opunha na sua passagem demoníaca».
Naquele excelente romance Ferreira de Castro também descreveu a obra maravilhosa e épica das «levadas» madeirenses - «quilómetros e quilómetros de aquedutos que cortavam toda a ilha, cordas líquidas que rabeavam ao longo das serras para ir irrigar canaviais, vinhas, hortejos e pomares». E, em «Pequenos Mundos», anota que a ilha não tem grandes alamedas. «Contudo, as suas levadas superam, em encanto, as mais grandiosas avenidas do Mundo. Elas correm entre túneis de folhagem e para cima, para baixo, por toda a parte, desde as encostas das montanhas até aos vales de maior soledade. (…) As levadas são caminhos no Paraíso, que paradisíaco é tudo quanto se vê, ouve e sente. (...) A água vadia vem cantando por entre rochas cobertas de musgos, por entre rendados fetos, por entre árvores; brilha acolá, que nem prata, desaparece além, aparece de novo, adelgaçando-se numas rochas, despenhando-se de outras e enche de ritmo o silêncio. Andam-se quilómetros e sempre se sente esta magia pairante, e sempre se encontram, em sua enorme variedade, panoramas de um solene encantamento e de uma inenarrável beleza. É assim no Rabaçal, é assim no Ribeiro Frio, nas Queimadas, nesse espectacular Caldeirão Verde, e não havia levada que no seu andamento não fosse conduzindo para longe, já canalizadas, pequenas cataratas de música vigorosa ou fontes de brando cicio».

No romance «Eternidade» Ferreira de Castro enalteceu, igualmente, o hercúleo trabalho dos camponeses madeirenses, que mourejando de manhã á noite, «despidos de luxos psíquicos e corporais, suavam nos terrenos, cobrindo todos os declives com imensas escadarias que parecem dirigir-se ao Céu»; não deixando um palmo de terra por aproveitar. «Na cabeça o barrete camacheiro, sobre a camisa o colete desabotoado, os pés descalços ou escondidos em botas-chãs - o homem cava, cava, aplana e sua, para abrir à agricultura uma série infindável de degraus, os poios, que davam vinho e onde verdejava a horta por toda a parte. E quando a enxada encontrava rocha, ele carregava lá de baixo, ou lá de cima, de onde quer que houvesse, a terra necessária para cobrir a inimiga e alimentar quantas raízes fosse possível entrançarem-se ali; nessa heróica luta pelo pão».

Sempre enfeitiçado, o escritor lembra outros desvãos e panoramas, como os espectaculares Caldeirão Verde e Rabaçal, onde os fetos e os arbustos pareciam em perpétua adolescência, assim como «os recantos sombrios e a água sempre em melopeia, sugeriam um amor extra-humano, uma vida só de amor - sem outra preocupação, sem outros objectivos, sem outra realidade». Encanta-se ainda com caminhadas por terras vestidas de loureiros, «tantos, tantos, que só eles se enchergavam, e se urzes havia estavam tão acaçapadas que não ousavam erguer a rendada crista por entre os dominadores».
Não muito longe, o Ribeiro Frio «caía, ruidoso, entre grandes penedos e sobre ele dava passagem uma frágil e tosca ponte». Após ligeira tirada, abeiravam-se os majestosos Balcões, onde defendidos da vertigem por tosca antepa de varas, os caminhantes eram rodeados por rústicos assentos de pedra, «e contemplavam a Ribeira da Metade num vale cavado entre a imponência das montanhas. As encostas cobriam-se de arvoredos, urzes, louros e folhados que ramalhavam docemente nas adustas sinuosidades». Esse vale prosseguia até ao Faial e depois até à Penha D'Águia «que, altiva em sua semelhança com a ave orgulhosa, se recortava já sobre o mar. E se os olhos teimassem ainda, descobririam ao longe, esfumada no Oceano, a Ilha do Porto Santo – mancha acastanhada e pequenina na linha do horizonte».

Digna de nota é ainda a descrição, na «Eternidade», duma excursão a Santana, freguesia que nos primeiros decénios do século XX, apenas era servida por estrada de automóvel até o Cedro Gordo, onde para prosseguir a jornada, os viajantes eram aguardados por um carro regional «puxado por muares, coberto por toldo de oleado e firmado o assento e seu encosto de vimes, sobre dois travessões ensebados»; conduzido com grande perícia por dois boieiros e seu ajudante o candeeiro, sempre com um cão, seguindo-os de perto. a dar ao rabo. Todo o caminho revelava-se penoso, «ora subindo, ora descendo serras e colinas, que parecia terem nascido umas das outras, constituindo família numerosa». O declive dos despenhadeiros, além de perigoso, produzia vertigens; embora «os condutores corressem para a banda onde a ladeira não tinha defesa própria e, fincando na caranguejola ombros e mãos, amparavam-na, para que na volta apertada não se desequilibrasse e fosse malhar lá em baixo».
Desse modo chegavam a Santana, que airosa se mostrava entre abas debruadas de buxo e de hortênsias. «As casas quase se ocultavam, agachando-se, entre pompas naturais. Havia-as de pedra, sim, e caiadinhas de branco, mas eram poucas entre as muitas que cobertas de colmo, sugeriam cabanas de plagas ardorosas de África. Tão agudo se mostrava o ângulo cimeiro, que a facha protectora quase roçava no chão as suas extremidades. Na frente, de madeira, abria-se janelico de quatro vidros e, ao lado, a porta». E nenhuma havia que não expusesse, em redor, flores de vária cores e espécies, dentro de latas enferrujadas, panelas velhas e caixotes.
Não obstante o sublime colorido e os deslumbrantes panoramas daquela freguesia, Ferreira de Castro comenta que o aproveitamento turístico ainda era incipiente, pois apesar de tantas belezas naturais, eram grandes as dificuldades de acesso, «pois só se chegava ao centro da ilha, a cavalo ou em carripanas de arrasto, que mulas ou bois puxavam ao longo de acidentados caminhos. Também era de uso a rede, enfiada numa vara, com o sibarita dentro, que humildes homens transportavam ofegantes por serros e vales. A isto chamava-se pitoresco»...

Em relação à vida social e ao quotidiano do arquipélago, Ferreira de Castro comenta, em «Pequenos Mundos», que tal como na Córsega, «a existência humana nas aldeias da Madeira caracterizava-se por uma forçada sobriedade na alimentação. Aqui bebe-se aguardente a mais e come-se pão a menos. O hortejo, o leitezito da sua vaca, que o camponês vende para os lacticínios e os bordados que faz a mulher, dão-lhe tão fraco rendimento, que chega-se ao ponto da maioria das crianças não ir à escola porque os pais não podiam comprar os livros do ensino».
Na «Eternidade», uma camponesa lamenta que, «antigamente, ainda um homem tinha a render as suas vinhas, as suas canas e as suas vacas. Hoje, ter ou não ter era a mesma coisa. O próprio leite, além de nada valer, era pago com grande atraso, pois os senhores da cidade diziam que ninguém lhes comprava a manteiga».
Juvenal – personagem nitidamente autobiográfica desse romance – impressionado com a vida dura dos «vilões», lamentava que nada mais lhes restava para além da luta contra a injustiça e a opressão; embora tivesse a certeza «que um dia, a Humanidade deixaria de lutar entre si, para lutar somente por si, contra as condições da sua origem e as forças da natureza».
E, talvez porque já germinasse forte contestação contra a política dos monopólios criados pelo Estado Novo, o escritor concebeu uma «jaquerie» tardia, semelhante à célebre «Revolução do Leite», que só aconteceria, efectivamente, dois anos depois, o que é de facto espantoso. Com grande vivacidade imaginou que a multidão surge, ululante, na curva da estrada. «Eram centenas de cabeças, umas atrás das outras; sempre umas atrás das outras, homens e mulheres, rapazes de entrar nas sortes e velhos e velhas que se arrastavam tocados pelo entusiasmo que galvanizava a horda inteira. Eles vinham de bordão e barretes camacheiros de asas tão longas e caídas, que nem demónios os usariam com tal expressão. Entre as mulheres havia as que traziam a matilha branca, como se fossem para uma festa e outras com os filhos ao colo, apresentavam cara famulenta, a recordarem a tuberculose que lhes ia roendo os pulmões enfraquecidos. Uma e outra bandeira vermelha estendia-se e engelhava-se sobre as suas mãos». Atrás do tropel, como estandarte esticado entre duas varas, ondeava um belo bordado, feito por mãos delicadas de pobres mulheres, onde «vinha desenhada em tosca letras de palmo e meio o grito que merecera ser levado em andor: Queremos Pão. Queremos Pão»!
A meio da caminhada, surge com ar severo o sacristão e o padre exibindo a cruz faiscando ao sol, e os sublevados deixaram cair em síncope a sua vozearia, e a própria indignação dos mais exaltados, amainou e esmoreceu, «como se o irmão que morreu há dois mil anos, por se revoltar, os fascinasse ainda – mas agora para voluntária sujeição».
Contudo, Juvenal acorreu ao local e grita-lhes:- «estão enganados! Se Deus existe, Ele tem de ser igual para todos e não pode colocar-se ao lado dos que deixam o povo morrer de fome! Vamos para o Funchal»!
Então, decididamente, a multidão voltou a mover-se para a cidade, onde cercou o palácio do governador, sempre gritando: QUEREMOS PÃO! QUEREMOS PÃO! «Porém, os famintos foram recebidos pelos tiros da soldadesca, que feriram alguns e os abalaram, momentaneamente, pois depressa sucedeu um novo ímpeto. A guarda voltou a disparar, agora não só com carabinas, mas também com metralhadoras postadas atrás das ameias. Caiu mais gente ferida e os gritos dos que haviam sido atingidos pelas balas travaram o impulso dos camponeses», que principiaram a recuar, acabando por desistir da luta, embora alguns ainda tivessem incendiado uma fábrica de bordados.

A finalizar, o romancista comenta nos «Pequenos Mundos», que na sua maioria, os continentais amplificam a realidade, quando afirmam «que a Madeira não é patriota e apresenta-se desnacionalizada, vivendo dos ingleses, para os ingleses e não considerando gente senão os ingleses». Para demonstrar que são os verdadeiros donos da ilha tomam, por vezes, «expressões de grandes senhores e falam altivamente aos insulares». O próprio Raul Brandão, apesar de ser uma personalidade genial, aliás empolgado com a beleza da ilha, chegou a escrever que «a Madeira é um cenário e pouco mais, com desprezo absoluto por tudo o que não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês, e tudo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bolsa».
Ferreira de Castro reconhece que existem no Funchal demasiadas referências aos ingleses e muitos madeirenses conhecem e falam o idioma britânico. «Mas, o mesmo acontece em Maiorca que é espanhola, em Rodes que é italiana, em Creta que é grega e em demais ilhas que vivem, especialmente de turistas britânicos, pois o patriotismo não influi no comerciante se se trata de colher lucro».
Por tudo isso, o escritor conclui que os madeirenses «consideram a sua ilha como uma parcela de Portugal, embora muitas vezes, se queixem de que se encontram esquecidos, quase como filhos enjeitados. Deste modo, «todas as querelas de pátria e de unidade, são levantadas por continentais que os vêem superficialmente, que não por eles».
Por outro lado, é incontestável que os ilhéus, receberam o seu quinhão da melancolia lusitana e, sobretudo pela condição insular, «são homens de alma triste», alguns sofrendo até a neurastenia da quem vive em soledade. Creditam-se à aguardente todos os casos psiquiátricos, esquecendo que na ilha fundeiam e partem numerosos navios, «que deixam, na sua esteira, a sugestão de outros mundos e a sensação de encarceramento entre as montanhas e o mar. Acresce, que a magnificente beleza da ilha faz esquecer à maioria dos forasteiros o habitante. A paisagem quase anula o Homem, vendo-se nele apenas o pitoresco dos costumes».
A certeza, porém, é que só após «demorada convivência», é que estaremos em condições para conhecer, compreender e valorar a verdadeira psicologia, e sobretudo
a grandeza da alma dos insulares.

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