terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A Madeira na Obra de Raul Brandão


Raul Germano Brandão nasceu no Porto em 12 de Março de 1867, tendo falecido a 5 de Dezembro de 1930, na sua quinta, em Nespereira, próximo de Guimarães.
Frequentou o Curso Superior de Letras na Universidade de Coimbra, mas influenciado pelos pais, enveredou pela carreira militar, para a qual, aliás, nunca manifestou a mínima vocação.
Além de numerosos artigos saídos em jornais e revistas do país, publicou impressões de viagem, contos, peças de teatro e ensaios históricos; sendo os seus principais trabalhos Impressões e Paisagens (1890); A Farsa (1903); Os Pobres (1906); Húmus (1917); Memórias (1919 – 1933); Os Pescadores (1923); O Gebo e a Sombra, O Rei Imaginário, O Doido e a Morte (Teatro - 1923); As Ilhas Desconhecidas (1926); O Avejão (1929); e Pobre de Pedir (1931).
Na maioria destas obras, Raul Brandão - aliás como alguns escritores portugueses da época, nomeadamente, Abel Botelho e Fialho de Almeida – empregava uma prosa prenhe de vibrante fogo interior sempre que se debruçava sobre os rigores da condição humana, e recheada de grande solicitude para com todos os oprimidos, os infelizes e os desgraçados.
Deste modo, muitos dos seus escritos assemelham-se com o socialismo utópico de Dostoievsky, e a capacidade daquele romancista para analisar, por vezes de forma cruel e subterrânea, os tormentos físicos e espirituais dos humilhados. Sente-se também a influência da tendência anarquista de Tolstoi e, sobretudo, a profunda crise religiosa-moral daquele escritor, na contínua busca para desvendar a alma humana, nas suas mais íntimas e secretas tensões.
Raul Brandão mostra-se ainda sensível ao trilho aberto por Gogol, sobre o trágico fantástico do espírito do homem, nomeadamente a fusão do patético e do demoníaco, com o grotesco e o cómico, traduzidos num modelo tendencialmente realista, mas nunca despido de certos laivos românticos ou mesmo barrocos.
Daí que Oscar Lopes tenha escrito, que Raul Brandão «traz à literatura portuguesa um momento de íntima sensibilidade, em que a corrente naturalista se transmuda, quer mergulhando até ao fundo na tragédia dostoievskiana (e fialhesca) dos pobres e espezinhados; quer abrindo em febril confissão os escaninhos da má consciência pequeno-burguêsa, perante os gritos já ameaçadores de tal tragédia; quer transpondo a ressurreição histórica à Oliveira Martins até ao seu tom dominante de um patético grotesco; quer abeirando-se de um pitoresco impressionista de paisagens e costumes»; quer vibrando, intensamente, com as espantosas surpresas da vida, e com interrogações metafísicas sobre o para quê da dor e do sofrimento humano.

Feitas estas considerações muito gerais sobre a obra e as tendências literárias e ideológicas de Raul Brandão, procuraremos recriar e descrever com algum detalhe o capítulo das Ilhas Desconhecidas que, em 1926, o escritor dedicou à Madeira, páginas onde denotamos o grande apego do escritor pelo arquipélago madeirense, o seu pulsar panteísta face à natureza da ilha, e um olhar especialmente atento e carinhoso sobre a difícil situação das gentes humildes insulares; tudo descrito em pinceladas que embora com o intuito de alcançar um realismo documental, não deixam, por vezes, de se embrenhar numa estética impressionista, com alguns exageros barrocos ou românticos.
Raul Brandão começa por contar que vindo de Lisboa, numa madrugada de Junho de 1926, pressentiu que o vapor em que viajava se aproximava da Madeira, pois tinha acordado já com o cheiro a terra.
Entusiasmado, salta do beliche e sente que o ilumina uma luz cinzenta, luz doirada – transparência azul boiando cheia de cintilações ao longe, e depois mais luz viva que nasce e estremece diante da grande massa escura que sai do mar sob a magia do nascente:- tenho diante de mim dois morros espessos, um mais próximo, recortando o negrume no céu doirado, e o outro ao fundo, todo roxo e picado de luzinhas como se lhe tivessem soprado faúlhas que se pegam e reluzem, pairando sobre a imobilidade cinzenta do mar.
Lentamente, o navio abeira-se mais da costa, e o escritor descreve entusiasmado:- desdobram-se os planos, e aparece intacto todo o pano de fundo. Um hálito azul... Mais claridade estremecendo – esta primeira luz delicada e viva, quando acorda a terra e acorda o mar com o céu todo doirado e virgem para as bandas do nascente e nos deita o bafo à cara, é maravilhosa. Fundeamos, e a Madeira abre-nos os braços, com a ponta do Garajau num extremo e a ponta da Cruz no outro extremo. Adivinho as casas, que por ora são fantasmas e descem lá do alto até à praia. Agora o tom cinzento desapareceu, domina o azul e o oiro, e na minha frente o grande anfiteatro verde dos montes ergue-se como um altar até ao céu. É uma serra a pique, é uma serra voluptuosa e verde que se oferece lânguida e verde. Ao meio um grande monte entreaberto; por traz a montanha enorme e escalvada. Algumas colinas vão terminar no farol e no forte sobre um penedo destacado e corroído.
Sempre deslumbrado, Raul Brandão deixou-se ficar a bordo, contemplando e discorrendo sobre o belo panorama que a baía do Funchal lhe oferecia. O dia vai correndo, a luz ganha todos os tons e se modifica a todos os momentos, até ao fim da tarde, em que o mar se torna diáfano bem como os montes transparentes, com uma grande nuvem pousada em cima. Vejo perder a cor, desfalecer, sumir-se a terra, que no escuro cheira cada vez mais a fruta e me inebria. Já o primeiro plano está roxo, o segundo é uma mancha enorme e indecisa, e o mar no poente arfa como um seio, ainda iluminado.
A tarde passou célere, e a viajem vai prosseguir: De novo o ruído da hélice, o fumo da máquina, o ferro a levantar, e à medida que o vapor se afasta, a montanha que tanto atrai parece mais negra e maior – sobe, ergue-se e chega ao céu.

Três dias depois Raul Brandão atinge os Açores, onde visita e descreve as ilhas de Santa Maria, São Miguel, a cidade de Ponta Delgada, a Terceira, S. Jorge, a Graciosa; e embrenha-se no Corvo, com a sua gente e os seus costumes. De seguida percorre as Flores, a Horta a que chama ilha azul, e o Pico com a sua magia trágica da pesca à baleia. Encanta-se, ainda com as Sete Cidades, as Furnas e os segredos do Atlântico açoriano; até que em Agosto retorna para melhor conhecer a Madeira, pois nunca mais esquecera a manhã virginal passada na Ilha, sobretudo as cores que iam do cinzento ao doirado, do doirado ao azul-índigo – nem a montanha entreaberta saindo do mar, diante de si, a escorrer azul e verde.
Ainda a bordo, aninha-se na amurada à procura de luz – da outra luz em que foi criado - e já ao meio da tarde, começa a erguer-se uma coisa azulada e indistinta com uma grande nuvem cinzenta acachapada em cima. O sol que bate nos altos ilumina o cone dum monte e esguicha de entre as névoas sobre a extremidade dum morro quase negro. Já se distinguem as nodosidades disformes da terra e paredões, envoltos em fumaça que entra em rolos pelas fendas abertas da pedra. Acentua-se a dureza, as chapadas, as ravinas, os cortes perpendiculares cor de ferro; adivinha-se o drama que deve ter sido este parto, cheio de convulsões e de desmoronamentos, quando o grande cataclismo dilacerou e desmembrou o continente submerso, deixando patentes, neste resto, feridas que ainda hoje sangram. E nos bocados de cisco que por acaso caíram e alastraram à beira-mar, agarram-se meia dúzia de casinhas, que têm por pano do fundo a massa espessa erguida logo pelo lado de trás.
Horas mais tarde a costa caminha direita ao viajante, cada vez mais violeta e mais negra. Mete medo. Mal se distinguem as florestas nos altos enevoados e os vales profundos por onde a água no Inverno deve cair em torrentes. O navio segue encostado à falésia, que desse lado da ilha não tem fundo, mostrando-nos a Madeira cortada por um machado que a abriu de lés a lés, atirando com a outra parte para o fundo do mar. É um bronze severo e trágico que contrasta com a entrada do Funchal visto da outra costa da ilha.
No convés, Raul Brandão contempla as povoações: - Jardim do Mar e Paul do Mar, agarradas às muralhas, onde só distingue escorrências de zinavre. Só o homem! Só o homem é que se atreve a cultivar socalcos abertos a fogo na perpendicular da falésia! Depois, cada vez mais empolgado avista a Madalena do Mar, esmagada entre dois morros que se reflectem em negro no veludo da água; e a Ponta de Sol e o Cabo Girão que a noite torna maior e mais espesso...
O escritor, coberto pelas nuvens que baixam ainda mais sobre a tinta parada das águas, já mal distingue a terra até à ponta desmedida da Cruz, por trás da qual o espera o porto de abrigo. A cada momento que passa, mais alto e mais escuro se afigura o paredão que nos intercepta o mundo. Só há uma vaga claridade para o lado do mar; o resto é negrume alcantilado e monstruoso colaborando com a espessura da névoa e o indistinto da noite.

E é já fundeado no porto do Funchal que na manhã seguinte, Raul Brandão acorda. Abre a fresta, por onde entra o cheiro a trufa, e observa as vielas animadas, as ruazinhas calçadas de seixos ensebados, onde deslizam carros de bois sem rodas, pintados de amarelo, com toldos frescos e cortinas de ramagem apartadas ao meio. Olha para as casas brancas e amarelas, de beirais caiados de vermelho e gelosias pintadas de verde, que dão à cidade um carácter familiar e íntimo. Tudo surpreende: o calor, a luz forte, o jardim com fetos e um grande jacarandá de flores roxas, arbustos penetrados de satisfação, que na imobilidade e no silêncio vão desfolhando sobre a terra e deixando um charco rubro em roda.
Ao desembarcar, o escritor senta-se, por um instante, sob grandes plátanos, que se oferecem mesmo à saída do porto, e exclama:- este ar é um perfume gordo. Depois sobe até um largo irregular, e depressa encontra a igreja da Sé - grande cofre de sândalo com doirados e incrustações em madrepérola. Lá dentro cheira a incenso e a madeira preciosa; cá fora, por cima dos telhados, descobre-se sempre a carcaça denegrida da serra.
De seguida, caminha na direcção do mercado que o atrai. Pequenino, com duas ou três árvores e uma fonte marmórea; todo ele transborda de fruta como um cesto cheio – cachos de bananas amarelas, alcofas de vindimas a deitar fora, com damascos, figos pretos sumarentos e entreabertos, a destilar sumo. Toda a fruta aqui é deliciosa e a banana deixa na boca um perfume persistente para o resto da vida. À primeira vista confunde: tem a gente de colocar-se a distância, como nas pochadas, para distinguir as uvas doiradas, as papaias, o vermelho dos tomates, as araras e as aves exóticas penduradas nos troncos, e sob os toldos, entre guinchos de macacos de S. Tomé, ouve-se a fala cantada do povo da ilha.
A própria sombra é luminosa. Com ela palpita o doirado das bananas, o amarelo dos melões, o vermelhão intenso das malaguetas enfiadas em rosários. E se um cesto sai da sombra para a luz, então as frutas faíscam, ardem e adquirem transparências extraordinárias. Da fonte de mármore e a refrescar o quadro a água cai aos pingos, misturada com o sol reluzindo, que pincela aqui, pincela ali, por entre as árvores.
O falatório dos ilhéus envolve-nos; bem como as mulheres de lenço branco na cabeça e botas de cano alto e rebuço, que preparam farnéis para a festa do Monte; os homens tisnados e secos; e as inglesas de cabelo curto, vestidas de branco, cortadas pelo mesmo padrão que a Inglaterra agora fabrica e exporta para todo o mundo.
Nessa tarde memorável, para contemplar devidamente a cidade e os subúrbios, o escritor subiu ao Pico dos Barcelos. Então, à medida que se afasta do centro, vão aparecendo casinhas isoladas entre jardins, e as largas folhas das bananeiras, ainda em botão roxo ou donde pende já todo o regime amadurecido. Lá do alto descobre-se, enfim, o majestoso anfiteatro. É uma grande concha, que termina dum lado no Pico do Garajau e do outro na Ponta de Santa Cruz, com o fundo de serra ondulado. Os vales e as linhas dos talvegues vêm de cima rasgados pelos enxurros sobre um leito de pedras em estilhaços, escorregadias e azuladas. (...) Tudo que se avista, à excepção dos cumes denegridos, foi dividido em hortas, em poios de cana muito verdes, em quintalejos de rama, donde irrompem tufos de bananeira, numa amplidão que entontece e deslumbra. São léguas de fertilidade, de jardins, de campos e culturas, que nos impõem o recolhimento e o silêncio.
À direita, a serra estende-se até Câmara de Lobos, distinguindo-se os riscos violeta das encostas, as vivendas lá no alto entre vinhas e pomares, os prédios rústicos pendurados na rocha e agarrados à montanha aberta ao meio, por um rasgão violento e romântico.
Impressionado com a profusão de árvores que irrompe de todos as bandas Raul Brandão admira a estranha vegetação tropical misturada com as outras: - ciprestes, cactos, plantas envernizadas, entre grupos de pinheiros mansos e grandes seres imóveis e fortes, estendendo a ramaria sobre as ruas.
O carácter deste panorama atrai os sentidos e tudo se conjuga para nos enternecer e assombrar. A sua majestade não se contenta com duas ou três árvores, envoltas no ar fino e pouco derretido - é exigente e pesada. É materialista e devassa. Ao mesmo tempo é bela. (...) Paraíso sem frio nem calor, a que se ajunta ainda o sabor dos vinhos bebidos aos golos, e cuja transparência se avalia através do vidro erguendo-o para a luz, dum doirado azul diluído que envolve toda a paisagem deitada a nossos pés, como as mulheres que oferecem os seios duros com impudor e inocência ao mesmo tempo.
Mas, para o espectáculo seja completo o escritor lembra que é preciso escolher dias e horas favoráveis afim de o fruir plenamente, porque o céu da Madeira anda quase sempre nublado, correndo a fumaceira pela barreira imensa que toma todo o horizonte do lado da terra e desce até ao mar, em rampa retalhada de culturas e povoada de casinhas que se vão aproximando e apinhando ao chegarem à cidade branca e sensual.

Na madrugada seguinte, Raul Brandão acorda com a sensação que a noite foi uma volúpia e o ar daquele clima tropical uma carícia, logo que desaparece o sol. Alvoroçado, apressa-se a devassar a ilha, a percorrer as estradas e os caminhos, a surpreender os recantos, as casas enegrecidas das aldeias, a vida rural, a vida marítima, e as culturas variadas; bem como a recriar-se com a grande variedade do clima madeirense.
Toda a fatia meridional da Madeira, por ser abrigada, pelo excelente clima, e por nunca aí nevar, é a zona mais habitada, e com uma grande actividade agrícola, nomeadamente a cultura da vinha nas encostas, e da cana-de-açúcar no litoral. Partindo do Funchal para Leste, a costa é quase sempre cortada a prumo: Santa Cruz, e lá no alto o Senhor da Serra; uma fenda enorme por onde entra o mar – Machico; e logo o Caniçal à beira d’água; e o relevo caprichoso da Ponta de São Lourenço. Para lá desse cabo começa a costa Norte, que é a parte mais selvática, mais verde e talvez a mais bela desta ilha tão variada e decorativa.
Para o Oeste da cidade, o sítio triste entre penedia negra, e cheirando ao peixe, de Câmara de Lobos; logo algumas aldeias, à beira de pequenos retalhos cultivados, com molhos de lenha secando à porta das choupanas. Às vezes um açude para a rega, a greta donde escorre a água, e lá para o fundo o abismo, com um espigão tremendo ao lado, que faz sombra e pavor: - há sítios destes, onde o sol só entra durante cinco ou seis horas por dia.
Mas, para Raul Brandão, o que mais caracteriza a Madeira é, sobretudo, um maciço de serras cortado a pique na costa Oeste, descendo até o mar na costa norte e mais cultivado nos vales e gargantas inundados pelas águas. O interior é montanha em osso, com excepção para o Paul da Serra. (...) No Curral das Freiras – cordilheira central - curioso vale de erupção, ravina enorme apertada entre vertentes alcantiladas, com profundidades que metem medo e que vão até oitocentos metros, deparam-se povoaçõezinhas perdidas: o Livramento, a Fajã Escura, o Curral, o Pico da Figueira e outras. Este sítio revolvido e dilacerado, explica talvez a formação da ilha, onde se encontram mais vestígios de crateras, com indícios de erupções relativamente recentes nos charcos do Porto Moniz, na Caniça, no Caniçal.
O escritor lembra ainda as gargantas apertadas só sombra, e uma encosta iluminada a toda a luz - profundas vertentes alcantiladas, num rasgo a prumo – cerros pedregosos gerados pela erupção, e a ribeira que escorre no sopé dos picos Ruivo e Canário – terrenos desolados por onde deve andar o Diabo em dias de vento. Constantemente a paisagem modifica-se:- os montes figuram castelos arruinados e ferozes da Idade Média. É outra vegetação – loureiros e o til nos fundos onde encharca a humidade. Desolação e surpresa, contrastes, amplos cenários de serra e mar, como no alto do Senhor da Serra, onde os penhascos são pequenos para se encherem daquela atmosfera perfumada.

Raul Brandão anota que para viajar e conhecer melhor o interior da Ilha, ou nos deslocamos numa rede suspensa por uma vara às costas de dois homens que caminham apegando-se a paus, ou então utiliza-se outro meio de transporte - o carro de bois, a que chamam cursões, assente em travessas de madeira, com dois sofás de verga forrados de paninho com pequenas flores azuis e é protegido do sol e da chuva pelo toldo com cortinas. Ao lado vai o homem, de aguilhão em punho, que fala aos bois, mas não os aguilhoa, nem é preciso; pois com cuidado extraordinário, pondo os pés e retesando os músculos, vai subindo e descendo as íngremes calçadas. Adiante dos bois, um jovem boieiro com o enxota-moscas na mão, de quando em quando, mete o rolo ensebado debaixo do cursão, para as travessas da caranguejola deslizarem melhor. Para o escritor, este carro é o meio mais rápido e original de correr os caminhos, sem a brutalidade inexpressiva da máquina, nem a rapidez estúpida do automóvel, dando a impressão de que voga e de que regressamos aos tempos primitivos e heróicos - é conjuntamente carro e barca.
O romancista comenta que um dos seus maiores prazeres na Madeira foi deambular pelo campo e pelas montanhas, entre castanheiros e água que corre, água que salta e vem ao nosso encontro pela calçada abaixo e nunca mais nos deixa, regando ora uma, ora outra quinta, distribuída por canais – água que vem da serra, e fala a todas as árvores e presta novo viço às flores exaustas, e que por todos os lados se encontra saltitando nas levadas que gelam e refrescam o caminho.
Castanheiros e palmeiras agitam no ar as comas delicadas e o escritor exclama deslumbrado:- Cheira-me tanto a fruta que espreito para dentro das casinhas impenetráveis, mas só distingo manchas coloridas de flores e pomares de rainhas-cláudias que o sol amadurece. Um muro dum e de outro lado, e gelosias ciumentas que tornam essas habitações ainda mais poéticas.
Tanta magia exaltou Raul Brandão, que ia cogitando que aquele ambiente foi feito para se viver isolado com uma mulher e volúpia, entre as paredes das quintas sumptuosas donde a verdura transborda, e até nos casebres, tão ricos como palácios. Duns e de outras se assiste ao espectáculo extraordinário do mar e da serra num cenário luxurioso e sensual. É um panorama e um ambiente que lembra carne viva - Éden de volúpia que nos entra pelos olhos e por todos os sentidos. Lá em cima apetece a gente deitar-se sob as árvores, penetrar em todas as quintas ainda adormecidas, estender-se em todos os esconderijos verdes que agitam as folhas no ar típico, no ar mágico, que se respira com sofreguidão e onde anda misturado o cheiro de fruta, o pique a mar, a alma dos vegetais e um silêncio cheio de vida.

Na madrugada seguinte o escritor demora-se no Monte, descrevendo o Largo da Fonte, como um grande terreiro e meia dúzia de plátanos enormes, que enchem de majestade, de frescura e de sombra este sítio suspenso entre o céu e o mar, onde fica a Igreja do Bom Jesus, e ao lado os casarões dos sanatórios.
Só estas árvores valem um império! Exclama Raul Brandão, que olha, atentamente, a gente que vai passando, e refere que nas primeiras tintas da manhã já as inglesas se deixam escorregar a toda a velocidade pela calçada, dentro do cesto de verga que o homem guia, impele ou detém, manobrando com os pés. Passa uma velha levando frangos para o mercado nos cursões, rapazes com molhos de lenha, e lavradores que empregam o mesmo meio de transporte para carradas de mato.
Encontra depois um idoso casal doutros tempos, solenes como quem vai cumprir uma importante missão; ela feia e encarquilhada, com a velha capa de recortes; ele seco, de barrete de borla na cabeça, e volta com que no Inverno agasalha as orelhas. Depara ainda com mulheres carregadas à cabeça e apegadas a varas, moços com cestos de batata-doce ou de semilha, e leiteiros com o pau que tem o jeito curvo dos ombros e no qual levam duas bilhas, uma a cada ponta.
A passo lento vai caminhando até ao Terreiro da Luta e comenta que a primeira impressão é só de luz, de luz doirada e de montanha verde que emerge do mar violeta. Nem uma nuvem, nem um átomo de poeira. Uma luz delicada e moça, um ar que se bebe a plenos haustos e ao mesmo tempo não sei o quê de puro e de sensual. (…) Aquela manhã é todo um mundo. É imenso e é nada. A ilha com a sua verdura tropical, sai do mar violeta e lá no fundo o Funchal, todo branco, acorda e espreguiça-se ainda tonto de sono...

No outro dia, para inebriar-se com as serranias da Madeira, o escritor caminha pelo Arrebentão, atravessando montes cor de oca, sobre uma estrada onde só a tabaibeira estende as mãos espalmadas a quem passa.
Estaciona no Poiso - paragem obrigatória para o café matutino e aproveitada para homens e bichos descansarem antes de encetar a jornada até ao Ribeiro Frio. Retomada a caminhada, irrompe outra vez e de toda a parte a verdura em catadupas: carvalhos, faias, castanheiros, e sempre a água amiga, saltitando numa levada que refresca todo o caminho.
Em frente, gargantas aspérrimas, rasgos enormes em atitude de quem vai perder o equilíbrio e cair no leito seco da torrente; (...) árvores em jorros verdes lançadas de lado a lado, formando ponte, ou atiradas ao acaso pela encosta, e lá no fundo, perdido no ermo, um povoado com meia dúzia de casas colmadas que parecem cortiços de abelhas. Só chega até nós o bater da bigorna do ferreiro. É outra natureza brava e que não tem nada de tropical; são aspectos típicos do norte da ilha...
Continuando a excursão, sempre fascinado, o escritor anota que de repente o nevoeiro envolve a terra, transtorna o panorama e tudo parece mais fantasmagórico... Agora descemos e vislumbramos lá em baixo a Ribeira da Ametade; ao fundo a povoação que mal se distingue, é o Faial; e em frente o grande penedo aguçado do Mirante.
Raul Brandão fica assombrado com a beleza dos cenários e exclama:- são paisagens de Doré – sítios ao mesmo tempo atropelados, bravios e poéticos. Um caos com pormenores líquidos. E a água segue-nos sempre, e o nevoeiro deforma tudo. (...) Caminho por uma rocha entreaberta (e água cá vai); avisto um penedo colossal cortado a pique; e detenho-me diante do vale que se alarga e da magia da névoa, que cria na minha frente um tropel de montes descendo aos galgões até ao abismo, com faias agarradas por milagre a bocados de terra. Cuido que ao longe, num rasgão, avisto o mar - um pontilhão - uma cabana - uma gota de água que cai da serra entre pedras lisas, até que por fim o nevoeiro se alastra e espalha, misturando tudo. Só o ruído da levada a meu lado teima, chamando-me ao sentimento da realidade.
O regresso é sempre a subir, até chegar de novo à região do sol. A luz não é casta como nos Açores, nem os montes verdes. As tintas são quentes, as lombas requeimadas, e a névoa fica lá para o fundo, entranhada nos vales. (...) Sucedem-se quase até ao Monte as mesmas corcovas arredondadas, onde cresce a queiró em pequenas moitas, e aqui e ali, a figueira-do-diabo. O escritor caminha agora entre pinheirais até volta entrar no Monte, onde encanta-se diante duma singela casita aninhada dentro das árvores, e com latada sobre varas no quintal. É térrea, com pequenas janelas de guilhotina viradas para o mar. Não vale nada: é casca abandonada dum caracol. Mas não parece feita; parece que cresceu ao mesmo tempo que as flores vermelhas que a rodeiam e que lembram uma paixão ou um crime. Enfeitiçado, Raul Brandão tem a sensação que aquele sítio é ideal para morrer, com os olhos postos no mar e aquecido de Inverno por aquele sol esplêndido; ou então para ali refugiar-se, onde corre um fio de água, entre meia dúzia de bananeiras, que vivem juntinhas e reproduzem-se espontaneamente.
Alonga os olhos, e outros panoramas vão desfilando até deter-se com a perspectiva do fundo, onde repara em carreiros escuros com renques inextricáveis de bambus, e nas ervas secas cheias de discos de sol, que apetece apanhar como moedas. (…) No alto o céu não pode com o peso das estrelas e a cidade em baixo, cheia de lumes, lembra uma maravilhosa constelação. Tudo o empolga naquela natureza, que talvez seja única no mundo e exclama em êxtase:- contemplo a casinha, as árvores – o meu sonho – e não desejo mais nada. Isto é completo e perfeito!...
Mas, não é só a paisagem que varia constantemente. Também todos os climas são possíveis na Ilha, desde o do norte cheio de frio, até ao tropical. Contudo, o daquele sítio de sonho, é uma delícia. Pode-se dormir ao ar livre sob o docel de estrelas, porque as noites tépidas da Madeira são uma carícia de pele macia. As noites lânguidas e brancas cheiram a flor e a fruta, as noites desfolham-se diante dos nossos olhos, como uma camélia que morre devagar...

Depois de sentir a amenidade e a variedade do clima da ilha, e de se encantar com as belas e sempre diferentes paisagens, o escritor debruça-se sobre os costumes e o quotidiano dos madeirenses na segunda década do séc. XX., cuja realidade pouco ou nada o entusiasmaram; o que nada tem de surpreendente, pois nessa época o arquipélago sofria um profundo atraso económico, social e cultural.
Começa por referir que a Madeira era um cenário e pouco mais – cenário deslumbrante, com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo que não lhe cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bolsa
Saem os britânicos dos paquetes fundeados no porto – elas vestidas de branco, blusas de croché e bengala na mão; eles secos, graves, dominadores, – e logo o Funchal se arma como um teatro, onde os patuscos ingleses passeiam a sua importância e exibem as suas libras esterlinas, em terreno conquistado.
Sentado à porta do Golden Gate, Raul Brandão, aguarda o desembarque dos passageiros do navio que acaba de fundear na baía da cidade, e verifica que depressa muda a armação como um cenário de mágica. Surgem homens com grandes chapéus de palha, para vender bordados, colares falsos de coral e cestas de fruta, aos turistas de passagem; iluminam de repente as lojas e segue o desfile de tipos – pretos de Cabo Verde com foulards vermelhos na cabeça, mulheres planturosas, alemães maciços, portugueses esverdeados e febris que vêm não sei donde - criaturas inverosímeis que se passeiam, em excursões de automóveis para fora da cidade, ou percorrem a pé a única rua onde há um café que transborda de luz.
Horas depois, embarcados esses turistas, toda a animação fictícia desaparece e o Funchal mergulha na pacatez da vida quotidiana; até que surja novo paquete e tudo comece de novo…
Certo que a Madeira também se organiza como estação de Inverno, abrilhantada por alguns magníficos hotéis; pois é uma terra esplêndida, com um clima quase tropical, cujo calor no Verão a viração modera, com excepção dos dias de siroco em que se não respira; no Inverno é uma delícia. Ar balsâmico e temperatura morna. (...) Há dias tão lindos que a gente tem medo de lhes tocar – imóveis, e dum azul magnético. A vida não tem peso, tudo parece um sonho. As noites são de magia. Rosas por toda a parte, pelo que é bem fácil imaginar a euforia de quem entra no panorâmico porto do Funchal; vindo das borrascas de Londres e do frio que enregela. Os tuberculosos respiram... A vida! As mulheres perdem a cabeça e bebem vinho cor de âmbar com as bocas entreabertas como frutos a cair de maduros. Com a noite vem o frenesim. Nos grandes hotéis, vestidas de branco e decotadas, inebriadas de música e com o deslumbramento do panorama em frente, erguem-se da mesa e dançam enlaçadas.
Nas deslumbrantes festas da noite do fim do ano, então, quem. pode acreditar na morte, quando todas as casas se iluminam com fogos de Bengala, coroando esta festa de estrangeiros e de ricos!(…)
Mas vejamos o cenário pelo lado de trás... Turismo, álcool e açúcar têm degradado o povo e enriquecido alguns felizes da terra. O homem do Funchal, em contacto com o progresso, transformou-se em hoteleiro, engraxador e chauffer. Quanto ao povo, Raul Brandão vê-o arrastar-se na rua, os homens degenerados e raquíticos, e pergunta a si mesmo o que ganharam os habitantes da cidade e os vilões com a civilização. Lucraram os negociantes e hoteleiros, afundam-se todos os outros numa abjecção que tem aumentado sempre. (...) O vilão, que no passado, passava com papas de milhos três vezes por dia, e dormia feliz com toda a família num buraco térreo, é hoje um alcoólico inveterado, que até desaprendeu de rir. (…) Muitos nem trabalham regularmente, ou escolhem a cultura fácil da cana-de-açúcar, que depois de posta só precisa ser estrumada e cortada durante anos. Apenas na parte mais desabrigada da ilha, onde o agricultor vive isolado e pobre, cultivando o milho e fabricando carvão para vender na cidade, ainda se conservam alguns costumes puros, que vão desaparecendo a pouco e pouco.
Em quase todas as cabanas as mulheres bordam. É a grande indústria feminina da Madeira. O negociante fornece-lhes o pano estampado e elas compram as linhas. Pouco ganham. Mas criam hábitos de trabalho. Tornam-se atentas e delicadas. O pior é que estas criaturas, quase todas desgraciosas e que substituíram o antigo vestuário por uma mantilha atada à cabeça, acompanham o homem no grogue e dão às crianças de mama chuchas de álcool...
O mar da Madeira é pródigo em gaiado, atum, espada preta, carapau, cherne etc. Só que muitos pescadores do Paul, de Câmara de Lobos e de Machico, gastam tudo o que ganham – bebem tudo. Bebem nacionais e estrangeiros. No Funchal, por toda a parte se vêm tabernas. Há-as no fundo das camisarias, com inglesas a beberricar. Os ourives são ao mesmo tempo ourives e taberneiros, as modistas têm balcão e copinhos. (...) Há-as logo à entrada do porto, uma de cada lado, com os barris já preparados para o consumo...
Amargurado, Brandão comenta que perante esse turismo, em que os forasteiros entram num país como quem entra num hotel - como quem paga; não hesita em dizer que detesta o turismo e adora a hospitalidade. Adora a antiga Espanha, durante muito tempo rebelde à exploração, recusando a adaptar-se à vontade alheia, e a satisfazer os estrangeiros com um sorriso falso, a ponto de mudar usos e costumes para lhes ser agradável.

A viajem ás Ilhas aproxima-se do fim. E o escritor, minado pela saudade, refere que deseja sentir a outra luz que o criou. Finalmente embarca, e apesar da tempestade passa a noite no tombadilho. No convés apenas o negrume agitando-se num clamor. Mas de manhã a borrasca aplaca-se dentro da bacia de Cascais – e a luz irrompe, uma luz alegre, uma luz que vibra toda, uma luz em que cada átomo tem asas e vem direita a si como uma flecha de oiro. No céu imenso e livre, o sol bóia como num grande fluido.
Portugal!»...

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